quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A degradação dos costumes


O Tribunal da Relação do Porto considerou que expressões como “incompetentes de merda” ou “abaixo estes ladrões” dirigidas a um serviço de Finanças não podem ser consideradas um “crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva”.

A 30 de Março de 2010, um contribuinte enviou um e-mail às Finanças de Gaia a verberar a ausência de resposta a um seu protesto sobre a cessação de benefícios fiscais a que teria direito onde considera os serviços fiscais “incompetentes de merda”.
A 5 de Abril decide enviar outro e-mail a reprovar, mais uma vez, a falta de resposta por parte das Finanças e descarrega a sua fúria escrevendo “Abaixo estes ladrões”.

As Finanças levaram o caso a tribunal e o 3.º Juízo Criminal de Vila Nova de Gaia condenou o contribuinte a uma pena de 70 dias de multa à taxa diária de sete euros, num total de 490 euros.

O arguido recorreu da decisão e o Tribunal da Relação do Porto decidiu em seu favor.
Diz o douto juiz desembargador na sua sentença que, apesar de “difamatórias” para com “as pessoas concretas que têm tido intervenção nos processos que o arguido tem pendentes nesse serviço [Finanças de Gaia]”, as expressões utilizadas não representam um “crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva” porque este tipo de crime “supõe a imputação de factos inverídicos, não a formulação de juízos”.
Acrescenta que a expressão “abaixo estes ladrões” pode “ofender a honra e consideração de uma pessoa singular, mas não o crédito, o prestígio ou a confiança de uma pessoa colectiva” e só seria possível uma condenação, se a queixa tivesse partido dos funcionários que o contribuinte considera incompetentes e não da instituição onde trabalham.

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É verdade que muitos serviços da função pública funcionam mal, sempre devido às suas chefias incompetentes e desonestas que depois se armam em virgens ofendidas.
É verdade que, fora de épocas eleitorais, governantes e autarcas estão acostumados a tratar as pessoas que deles dependem com sobranceria e desdém, sem o mínimo pudor, sem o mais ténue estremecimento ético quando as prejudicam gravemente, bem protegidos pela segurança que lhes proporciona a pertença a grupos de compadrio e a teias de influência política.

Mas é inaceitável sempre que uma pessoa tem, ou julga ter, razão numa desavença se arrogue o direito de insultar o interlocutor e de usar linguagem de carroceiro. E ainda mais inaceitável que um tribunal de segunda instãncia venha acarinhar um comportamento social tão nefasto.
Que tipo de sociedade é que, por este caminho, vamos construir? Uma sociedade onde se vai procurar resolver as divergências com agressões verbais.

Criticar, sim, mas de forma civilizada. Pobre culturalmente é, e pobre financeiramente será, a sociedade em que as pessoas têm de recorrer aos impropérios para se fazerem ouvir.
Que saudade dos tempos em que se aprendia nos bancos da escola a educar a raiva com a prosa vernácula dos nossos maiores escritores, como esta sublime carta de Eça de Queirós:


"Il.mo e Ex.mo Senhor Pinto Coelho, digno director da Companhia das Águas de Lisboa e digno membro do Partido Legitimista.

Dois factores igualmente importantes para mim me levam a dirigir a V. Ex.ª estas humildes regras: o primeiro é a tomada de Cuenca e as últimas vitórias das forças carlistas sobre as tropas republicanas, em Espanha; o segundo é a falta de água na minha cozinha e no meu quarto de banho.
Abundaram os carlistas e escassearam as águas, eis uma coincidência histórica que deve comover duplamente uma alma sobre a qual pesa, como na de V. Ex.ª, a responsabilidade da canalização e a do direito divino.
Se eu tiver a fortuna de exacerbar até às lágrimas a justa comoção de V. Ex.ª, que eu interponha o meu contador, Ex.mo Senhor, que eu o interponha nas relações da sensibilidade de V. Ex.ª com o mundo externo! E que essas lágrimas benditas, de industrial e de político, caiam na minha banheira!

E, pago este tributo aos nossos afectos, falemos um pouco, se V. Ex.ª o permite, dos nossos contratos. Em virtude de um escrito, devidamente firmado por V. Ex.ª e por mim, temos nós — um para com o outro — certo número de direitos e encargos.
Eu obriguei-me para com V. Ex.ª a pagar a despesa de uma encanação, o aluguer de um contador e o preço da água que consumisse. V. Ex.ª, pela sua parte, obrigou-se para comigo a fornecer-me a água para meu consumo. V. Ex.ª forneceria, eu pagava. Faltamos evidentemente à fé deste contrato: eu, se não pagar, V. Ex.ª, se não fornecer.
Se eu não pagar, V. Ex.ª faz isto: corta-me a canalização. Quando V. Ex.ª não fornecer, o que hei-de eu fazer, Ex.mo Senhor? É evidente que, para que o nosso contrato não seja inteiramente leonino, eu preciso no caso análogo àquele em que V. Ex.ª me cortaria a mim a canalização, de cortar alguma coisa a V. Ex.ª... Oh! E hei-de cortar-lha!...

Eu não peço indemnização pela perda que estou sofrendo, eu não peço contas, eu não peço explicações, eu chego a nem sequer pedir água! Não quero pôr a Companhia em dificuldades, não quero causar-lhes desgostos, nem prejuízos!
Quero apenas esta pequena desafronta, bem simples e bem razoável perante o direito e a justiça distributiva: quero cortar uma coisa a V. Ex.ª!

Rogo-lhe, Ex.mo Senhor, a especial fineza de me dizer imediatamente, peremptoriamente, sem evasivas, nem tergiversações, qual é a coisa que, no mais santo uso do meu pleno direito, eu possa cortar a V. Ex.ª.

Tenho a honra de ser.
De V. Ex.ª
Com muita consideração e com umas tesouras.

Eça de Queirós


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