O primeiro-ministro quer que o Tribunal Constitucional (TC) faça uma "clarificação técnica" sobre algumas partes do acórdão que, na sexta-feira passada, declarou inconstitucional três normas do OE 2014 — corte nos salários da função pública acima dos 675 euros, mas cujo chumbo não terá efeito retroactivo, redução de algumas pensões de sobrevivência taxas sobre o subsídio de desemprego e de doença.
Entretanto o executivo divulgou no portal do Governo a documentação enviada ao Tribunal Constitucional para defender o OE de 2014.
São 30 páginas, onde o executivo sublinha que o OE “não é o documento que se ambicionava, mas é o documento necessário para lançar o futuro sem descurar o presente”, defendendo depois as normas cuja fiscalização sucessiva foi requerida pelos partidos da oposição e pelo provedor da justiça no início deste ano.
O Governo enviou ainda ao TC uma análise comparativa das medidas aplicadas na administração pública na Grécia, Irlanda e Espanha, e uma outra onde se comparam as remunerações dos trabalhadores do sector privado e do sector público em Portugal feita pela consultora Mercer no ano passado.
Como complemento, foram enviados o boletim económico de Outono de 2013 do Banco de Portugal, uma auditoria feita à Carris (datada de 2009) e outra ao Metropolitano de Lisboa (2010), bem como os relatórios do OE para 2013 e para este ano.
Como o Orçamento do Estado é uma lei da assembleia da República, Passos Coelho escreveu à sua presidente, Assunção Esteves, para diligenciar no sentido de obter o esclarecimento “técnico” pretendido.
Nessa carta, o primeiro-ministro pediu ao parlamento que solicite aos juízes do Tribunal Constitucional (TC) uma “aclaração de obscuridades ou ambiguidades”, questionando sobre os prazos em que é suposto aplicar a decisão e sobre a extensão da abrangência nos subsídios de férias e de Natal.
No entanto, a aclaração foi uma figura jurídica suprimida na última revisão do Código de Processo Civil (CPC), feita já pela ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz.
Por isso, a argumentação jurídica do pedido enviado ao Parlamento aplica dois artigos do CPC relativos à rectificação de erros formais (n.º 1 do artigo 614º) e às causas da nulidade da sentença (n.º 1 do artigo 615º), que estipula que uma sentença pode ser declarada nula quando “os fundamentos estão em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”, justamente as palavras usadas pelo primeiro-ministro.
Contudo não é pedida a nulidade da sentença, o que leva um antigo juiz do Tribunal Constitucional a considerar que o pedido está mal elaborado e pode suscitar efeitos para além dos desejados pelo Governo.
Na carta enviada a Assunção Esteves, Passos refere especificamente a necessidade de clarificação de quatro pontos. Pretende saber
- se os duodécimos já pagos do subsídio de Natal estão, ou não, incluídos no chumbo, uma vez que os salários entre Janeiro e Maio não estão;
- se quem ainda não recebeu o subsídio de férias, deve recebê-lo com ou sem cortes;
- o que deve ser pago a quem já recebeu esse subsídio;
- a data exacta em que a decisão deve ter efeito, uma vez que o acórdão foi conhecido em 30 de Maio.
O envio do pedido para o parlamento e não directamente para o TC é justificado pelo reconhecimento de que o Governo “não é uma parte processual” na fiscalização da constitucionalidade do Orçamento. É o parlamento, como “órgão autor das normas declaradas inconstitucionais”, que pode fazer o pedido.
O constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia afirma, porém, que só os autores do pedido de fiscalização são parte processual, ou seja, os deputados do PCP, BE e PS e o provedor de Justiça.
Mas comunistas e bloquistas manifestaram-se, de imediato, contra o pedido de aclaração e até contra a conferência de líderes que se reuniu na quarta-feira para analisar o assunto.
Trata-se de um expediente do Governo para adiar a devolução dos cortes em algumas pensões de sobrevivência para Julho.
Sem saber o que o Tribunal Constitucional poderá decidir acerca do aumento da CES e da contribuição para a ADSE — incluídos no orçamento rectificativo sobre o qual este tribunal ainda não se pronunciou —, o Governo tenta agora ganhar tempo para negociar as medidas alternativas com os credores que permitam a libertação da última tranche do empréstimo no valor de 2,6 mil milhões de euros.
Sobre medidas para tapar o buraco aberto pelo acórdão do TC, que podem passar por mais um aumento de impostos, Passos Coelho recusou especular: “Estamos a ponderar tudo e, quando o Governo tiver uma decisão sobre essa matéria, o país saberá. Até lá, não vou criar instabilidade fazendo cenários sobre o que pode ser ou deixar de ser a decisão do Governo”.
A ministra das Finanças já tinha defendido na terça-feira a necessidade de haver estabilidade fiscal: “[Os aumentos dos impostos] não foram as nossas primeiras escolhas, foram as escolhas possíveis, dadas as circunstâncias, isto não é uma queixa, não é um lamento, é uma mera constatação de facto”, afirmou, porque o Governo se comprometeu com metas de redução do défice.
*
Os argumentos dos comentadores da notícia no Público:
Bertold
03/06/2014 18:07
O governo deveria recorrer ao TC para avaliar a constitucionalidade dos últimos acórdãos.
- Rui Martins
03/06/2014 22:03
E que tal cumprir a lei e a Constituição? Não acha que seria muito mais normal e razoável? Infelizmente estamos perante um conjunto de empregados de 3ª da Finança, da Banca e dos grandes grupos económicos que não olham a meios para tentar servir os seus patrões, mas como não são sequer particularmente competentes, fazem-no muitas vezes de forma pouco inteligente, deixando vir à luz do dia as suas muitas limitações... O (des)governo decorou que era necessário provocar o empobrecimento da população e retirar o máximo de direitos sociais e outros e aplica de forma cega tudo o que lhe parece que possa ajudar a atingir esses objectivos... Cumprimentos, RM
- Bertold
04/06/2014 14:59
Caro RM, como se pode cumprir uma coisa que se desconhece?
O TC não se baseia em nenhuma lei, mas em princípios vagos e gerais como a igualdade, a proporcionalidade e similares. Com esse género de princípios pode-se defender tudo e o seu contrário.
A partir daí a arbitrariedade impera, e não haveria um único acto público ou privado que não fosse contestável. Com estes princípios absolutamente gerais é como usar a bomba atómica para matar moscas... O efeito inevitável é o desprestígio do tribunal. Como se mete em política é atacado politicamente.
Sem comentários:
Enviar um comentário