quarta-feira, 4 de junho de 2014

Passos Coelho pede "clarificação técnica" de partes do acórdão do TC


O primeiro-ministro quer que o Tribunal Constitucional (TC) faça uma "clarificação técnica" sobre algumas partes do acórdão que, na sexta-feira passada, declarou inconstitucional três normas do OE 2014 — corte nos salários da função pública acima dos 675 euros, mas cujo chumbo não terá efeito retroactivo, redução de algumas pensões de sobrevivência taxas sobre o subsídio de desemprego e de doença.

Entretanto o executivo divulgou no portal do Governo a documentação enviada ao Tribunal Constitucional para defender o OE de 2014.

São 30 páginas, onde o executivo sublinha que o OE “não é o documento que se ambicionava, mas é o documento necessário para lançar o futuro sem descurar o presente”, defendendo depois as normas cuja fiscalização sucessiva foi requerida pelos partidos da oposição e pelo provedor da justiça no início deste ano.
O Governo enviou ainda ao TC uma análise comparativa das medidas aplicadas na administração pública na Grécia, Irlanda e Espanha, e uma outra onde se comparam as remunerações dos trabalhadores do sector privado e do sector público em Portugal feita pela consultora Mercer no ano passado.
Como complemento, foram enviados o boletim económico de Outono de 2013 do Banco de Portugal, uma auditoria feita à Carris (datada de 2009) e outra ao Metropolitano de Lisboa (2010), bem como os relatórios do OE para 2013 e para este ano.

Como o Orçamento do Estado é uma lei da assembleia da República, Passos Coelho escreveu à sua presidente, Assunção Esteves, para diligenciar no sentido de obter o esclarecimento “técnico” pretendido.
Nessa carta, o primeiro-ministro pediu ao parlamento que solicite aos juízes do Tribunal Constitucional (TC) uma “aclaração de obscuridades ou ambiguidades”, questionando sobre os prazos em que é suposto aplicar a decisão e sobre a extensão da abrangência nos subsídios de férias e de Natal.

No entanto, a aclaração foi uma figura jurídica suprimida na última revisão do Código de Processo Civil (CPC), feita já pela ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz.
Por isso, a argumentação jurídica do pedido enviado ao Parlamento aplica dois artigos do CPC relativos à rectificação de erros formais (n.º 1 do artigo 614º) e às causas da nulidade da sentença (n.º 1 do artigo 615º), que estipula que uma sentença pode ser declarada nula quando “os fundamentos estão em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”, justamente as palavras usadas pelo primeiro-ministro.
Contudo não é pedida a nulidade da sentença, o que leva um antigo juiz do Tribunal Constitucional a considerar que o pedido está mal elaborado e pode suscitar efeitos para além dos desejados pelo Governo.

Na carta enviada a Assunção Esteves, Passos refere especificamente a necessidade de clarificação de quatro pontos. Pretende saber
  1. se os duodécimos já pagos do subsídio de Natal estão, ou não, incluídos no chumbo, uma vez que os salários entre Janeiro e Maio não estão;
  2. se quem ainda não recebeu o subsídio de férias, deve recebê-lo com ou sem cortes;
  3. o que deve ser pago a quem já recebeu esse subsídio;
  4. a data exacta em que a decisão deve ter efeito, uma vez que o acórdão foi conhecido em 30 de Maio.
"O esclarecimento de tais questões é fundamental para a exacta definição das balizas e condições que definem o âmbito de actuação do Governo, sem o qual não poderá este assegurar uma boa e normal execução das obrigações que lhe incumbem, decorrentes do referido acórdão", justifica o primeiro-ministro na carta.

O envio do pedido para o parlamento e não directamente para o TC é justificado pelo reconhecimento de que o Governo “não é uma parte processual” na fiscalização da constitucionalidade do Orçamento. É o parlamento, como “órgão autor das normas declaradas inconstitucionais”, que pode fazer o pedido.

O constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia afirma, porém, que só os autores do pedido de fiscalização são parte processual, ou seja, os deputados do PCP, BE e PS e o provedor de Justiça.
Mas comunistas e bloquistas manifestaram-se, de imediato, contra o pedido de aclaração e até contra a conferência de líderes que se reuniu na quarta-feira para analisar o assunto.

Trata-se de um expediente do Governo para adiar a devolução dos cortes em algumas pensões de sobrevivência para Julho.
Sem saber o que o Tribunal Constitucional poderá decidir acerca do aumento da CES e da contribuição para a ADSE — incluídos no orçamento rectificativo sobre o qual este tribunal ainda não se pronunciou —, o Governo tenta agora ganhar tempo para negociar as medidas alternativas com os credores que permitam a libertação da última tranche do empréstimo no valor de 2,6 mil milhões de euros.

Sobre medidas para tapar o buraco aberto pelo acórdão do TC, que podem passar por mais um aumento de impostos, Passos Coelho recusou especular: “Estamos a ponderar tudo e, quando o Governo tiver uma decisão sobre essa matéria, o país saberá. Até lá, não vou criar instabilidade fazendo cenários sobre o que pode ser ou deixar de ser a decisão do Governo”.

A ministra das Finanças já tinha defendido na terça-feira a necessidade de haver estabilidade fiscal: “[Os aumentos dos impostos] não foram as nossas primeiras escolhas, foram as escolhas possíveis, dadas as circunstâncias, isto não é uma queixa, não é um lamento, é uma mera constatação de facto”, afirmou, porque o Governo se comprometeu com metas de redução do défice.


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Os argumentos dos comentadores da notícia no Público:

Bertold
03/06/2014 18:07
O governo deveria recorrer ao TC para avaliar a constitucionalidade dos últimos acórdãos.
  • Rui Martins
    03/06/2014 22:03
    E que tal cumprir a lei e a Constituição? Não acha que seria muito mais normal e razoável? Infelizmente estamos perante um conjunto de empregados de 3ª da Finança, da Banca e dos grandes grupos económicos que não olham a meios para tentar servir os seus patrões, mas como não são sequer particularmente competentes, fazem-no muitas vezes de forma pouco inteligente, deixando vir à luz do dia as suas muitas limitações... O (des)governo decorou que era necessário provocar o empobrecimento da população e retirar o máximo de direitos sociais e outros e aplica de forma cega tudo o que lhe parece que possa ajudar a atingir esses objectivos... Cumprimentos, RM
  • Bertold
    04/06/2014 14:59
    Caro RM, como se pode cumprir uma coisa que se desconhece?
    O TC não se baseia em nenhuma lei, mas em princípios vagos e gerais como a igualdade, a proporcionalidade e similares. Com esse género de princípios pode-se defender tudo e o seu contrário.
    A partir daí a arbitrariedade impera, e não haveria um único acto público ou privado que não fosse contestável. Com estes princípios absolutamente gerais é como usar a bomba atómica para matar moscas... O efeito inevitável é o desprestígio do tribunal. Como se mete em política é atacado politicamente.


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