Em pouco mais de duas semanas, o Ministério Público divulgou que terminaram sem acusação três processos que envolviam altas figuras da política angolana.
Primeiro, foi a investigação desencadeada pelo alerta bancário causado por uma transferência bancária de 93 mil dólares (70,3 mil euros) de uma empresa com conta no Banco Comercial Português de Cayman, sediado no paraíso fiscal das ilhas Cayman, para uma conta do procurador-geral da República angolano, João Maria de Sousa, no Santander Totta de Portugal, em Novembro de 2011.
O arquivamento foi determinado pelo procurador Rosário Teixeira e a nota divulgada em 30 de Outubro dizia:
“Efectuadas diligências e recolhida a informação necessária, o Ministério Público considerou esclarecida e justificada a operação financeira objecto de investigação e determinou o arquivamento do procedimento por decisão proferida a 18 de Julho de 2013, a qual foi notificada ao próprio, por carta registada, no corrente mês [de Outubro]”.
Terá, portanto, sido decidido meses antes do polémico pedido público de desculpas do ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, pelas investigações do Ministério Público português a altos funcionários de Angola, na entrevista concedida em 18 de Setembro à Rádio Nacional de Angola, embora não se entenda o atraso na notificação.
Depois, a empresa que tem como único accionista um dos enteados do vice-presidente de Angola, aceitou uma proposta do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) para pagar uma indemnização e assim viu arquivado, no passado mês de Julho, o processo-crime instaurado contra si por fraude fiscal, falsificação e branqueamento de capitais.
A terceira divulgação ocorreu anteontem: o DCIAP arquivara, na segunda-feira, parte do inquérito que visava altos dirigentes angolanos, concluindo as investigações que visavam o vice-presidente de Angola, Manuel Domingos Vicente, o governador da província de Cuando Cubango, Francisco Higino Lopes Carneiro e a empresa Portmill – Investimentos e Telecomunicações, S.A..
Este inquérito foi aberto em 2012, na sequência de uma queixa-crime apresentada pelo antigo embaixador angolano Adriano Teixeira Parreira sobre transacções financeiras em bancos e instituições financeiras portuguesas. O Ministério Público instaurou uma averiguação preventiva e após um ano a recolher informação decidiu converter o processo num inquérito-crime.
Foi a própria Procuradoria-Geral da República (PGR) que mandou divulgar na quarta-feira um comunicado onde esclarece que o Ministério Público determinou a separação de processos relativamente aos três denunciados, pedida pela defesa, com fundamento na existência de “um interesse ponderoso e atendível”.
O inquérito continua aberto, por enquanto, em relação aos outros visados — Isabel dos Santos e Welwitschea (Tchizé) dos Santos, filhas do Presidente José Eduardo dos Santos, e de Hélder Vieira Dias, conhecido como general "Kopelipa", ministro de Estado e chefe da Casa Militar do presidente da República angolano.
Após informar que “investigava-se, em relação aos denunciados, a eventual prática do crime de branqueamento de capitais, com possível ligação a subsequentes crimes de natureza fiscal”, a PGR acrescenta que “foram feitas as diligências tendentes à clarificação das operações e movimentos de capitais de origem não esclarecida, tendo sido produzida prova, que consta dos autos”.
Afirma ainda que Manuel Vicente, Francisco Carneiro e a Portmill “vieram aos autos, voluntária e sucessivamente, trazer os elementos documentais de suporte das transacções financeiras detectadas nas suas contas bancárias, assim como fizeram prova de rendimentos compatíveis com as operações referidas”. Sabe-se que os denunciados nunca foram ouvidos, sendo os esclarecimentos prestados pelo advogado Paulo Amaral Blanco que os representou.
Depois de realçar que “foi feita prova de que não têm antecedentes criminais em Angola, por crimes precedentes de branqueamento de capitais, nem processos-crime em investigação” e considerar ser pacífico, na doutrina e na jurisprudência, que o branqueamento de capitais pressupõe a existência de outros crimes prévios, de cuja prática sejam provenientes os bens que se pretende dissimular, o Ministério Publico conclui:
“A inexistência de crime precedente e a apresentação de elementos documentais de suporte das transacções financeiras, detectadas nas suas contas bancárias, constituem o fundamento do arquivamento do inquérito”.
Lida esta “douta” argumentação, imposta superiormente como é óbvio, poder-se-ia pensar que um resto de dignidade implicaria pôr uma pedra sobre o assunto.
Eis senão quando a Procuradoria-Geral da República vem anunciar hoje a instauração de um inquérito disciplinar ao procurador a quem coube este inquérito-crime. Determinado pela procuradora-geral Joana Marques Vidal e já comunicado ao Conselho Superior do Ministério Público, o órgão que decide o resultado dos processos disciplinares.
E qual é o “crime” do procurador Paulo Gonçalves?
Ter escrito no despacho de arquivamento do caso que visava o vice-presidente de Angola que esperava contribuir com a sua decisão para “o desanuviar do clima de tensão diplomática” entre Portugal e Angola.
Num documento com 11 (onze!) páginas a PGR cita uma exposição apresentada pelo advogado de Manuel Vicente onde agradece a “simpática referência” do procurador Paulo Gonçalves, num outro despacho, ao "respeito e admiração de que é merecedor o vice-presidente de um país amigo como Angola".
Depois transcreve o desejo expresso pelo magistrado, no despacho de arquivamento, de que a sua decisão “venha contribuir para o desanuviar do clima de tensão diplomática que tem ensombrado com mal entendidos a amizade entre os dois povos irmãos, permitindo, conforme decorre de requerimentos apresentados, a realização de encontros e cimeiras sem estigmas infundados, numa reciprocidade de «bom senso»”.
Recrimina a PGR que nesse despacho “constam considerações de natureza subjectiva que em nada se relacionam com a apreciação e a ponderação técnico-jurídica da matéria objecto dos autos, as quais devem obedecer a rigorosos critérios de objectividade e legalidade, com integral respeito pelos princípios constitucionais da separação de poderes”.
E finaliza: “Tais considerações são susceptíveis de integrar eventuais infracções de natureza disciplinar. Pelo que a Procuradora-Geral da República decidiu determinar a instauração de inquérito”.
Mas tem o cuidado de esclarecer que a instauração deste inquérito “não coloca em causa o sentido da decisão do despacho de arquivamento”.
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Em Portugal, a separação de poderes entre órgãos de soberania é uma ficção. Muito peso devem ter as riquezas acumuladas pelos corruptos políticos angolanos na economia portuguesa e... no bolso dos nossos políticos. Ou temos uma procuradora-geral da República sem coluna vertebral.
Oh Galileu, se tivesses nascido neste pobre País, tinhas mesmo sido condenado a morrer na fogueira.
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