sexta-feira, 4 de julho de 2014

No interior do Conselho de Estado


Nunca as reuniões do Conselho de Estado¹ tiveram consequências espectaculares na vida política nacional ou influenciaram a sociedade portuguesa. Habitualmente os conselheiros trocam opiniões, bocejam e, no final, é divulgado um comunicado inócuo proposto pelo presidente da República. Desta vez foi este
:
1 – O Presidente da República reuniu hoje o Conselho de Estado, para efeitos do artigo 145.º, alínea e), segunda parte, da Constituição, tendo como ordem de trabalhos o tema: “Situação económica, social e política, face à conclusão do Programa de Ajustamento e ao Acordo de Parceria 2014-2020 entre Portugal e a União Europeia para os Fundos Estruturais”.
2 – O Conselho de Estado analisou a actual situação social e económica portuguesa, face aos resultados do Programa de Ajustamento, concluído em 17 de Maio, e debateu as condições necessárias para que o País, nesta nova fase da vida nacional, consiga superar o desafio do crescimento económico e do emprego sustentáveis, com preservação da coesão e da justiça social, com sustentabilidade das finanças públicas e equilíbrio das contas externas e com inversão da actual tendência demográfica.
3 – Foi reconhecido pelos Conselheiros de Estado que a superação do referido desafio implica:
  • por um lado, uma voz activa de Portugal na União Europeia em prol do crescimento, do emprego e da coesão, sobretudo no processo em curso de aprofundamento da união económica, orçamental e bancária;
  • por outro lado, a utilização muito criteriosa dos fundos estruturais do Acordo de Parceria 2014-2020 entre Portugal e a União Europeia, que deverão contribuir para a obtenção de resultados positivos no debelar dos constrangimentos estruturais da economia portuguesa em matéria de competitividade, internacionalização e assimetrias regionais de desenvolvimento.
4 – Face à seriedade das exigências que o País enfrenta, o Conselho de Estado exorta todas as forças políticas e sociais, no quadro da diversidade e pluralidade democrática, a que preservem entre si as pontes de diálogo construtivo e a que empenhem os seus melhores esforços na obtenção de entendimentos quanto aos objectivos nacionais permanentes, factor decisivo da confiança e da esperança dos portugueses.
3/07/2014


Um Conselho de Estado que durou 6 horas e acabou às 23h30. Da esquerda para a direita: Luís Filipe Menezes, Luís Marques Mendes, Francisco Pinto Balsemão, Vítor Bento, Marcelo Rebelo de Sousa, Jorge Sampaio, Vasco Cordeiro, Joaquim Sousa Ribeiro, Assunção Esteves, Cavaco Silva, Passos Coelho, Faria Costa, Ramalho Eanes, João Lobo Antunes, Leonor Beleza, Bagão Félix, António José Seguro e Manuel Alegre.


Muito mais interessante do que o texto do comunicado são as propostas feitas, mas não aceites, os assuntos debatidos, mas não registados, e os argumentos apresentados pelos conselheiros. Factos que a comunicação social conseguiu trazer para fora das paredes do palácio de Belém e que nos permitem avaliar a competência, a sensatez (ou a leviandade), a compaixão dos conselheiros e os interesses defendidos.

O pagamento da dívida pública foi abordado por Jorge Sampaio que disse ser preciso "quebrar o tabu" sobre a renegociação da dívida. António José Seguro falou a seguir e defendeu a ideia, obtendo o apoio de Bagão Félix e Manuel Alegre.
A grande surpresa veio de Ramalho Eanes que não só defendeu a renegociação da dívida, como propôs mesmo a constituição de uma comissão de personalidades independentes e com credibilidade para começar a preparar as condições a serem negociadas. Para atender à intervenção do antigo presidente da República, que mostrou grande preocupação com a "injustiça social" que considera existir no país, a frase “preservação da coesão e da justiça social” ficou registada no ponto 2 do comunicado.

Em sentido contrário se pronunciaram outros conselheiros. O PÚBLICO destaca a intervenção “em tom assertivo e de forma clara” de Vítor Bento, o economista que integrou uma comissão europeia de estudo das dívidas públicas, em representação de Portugal, e que explicou as razões por que considera que não se deve renegociar a dívida neste momento:
Portugal tem prazos como nunca teve, o prazo de pagamento passou para 20 anos, o período de carência estende-se por 15 anos e os juros nunca foram tão baixos como são agora”.
Vítor Bento foi apoiado explicitamente por Leonor Beleza, Marques Mendes e Marcelo Rebelo de Sousa. Francisco Balsemão e Luís Filipe Menezes fizeram intervenções similares.
Por sua vez, o primeiro-ministro, Passos Coelho, afirmou que a mutualização da dívida vai acontecer por iniciativa da União Europeia, tendo defendido que a questão não seja objecto de uma proposta portuguesa, mas que deva ser deixada à iniciativa europeia.
Também Cavaco referiu a dívida pública na sua intervenção e lembrou aos presentes que a dívida pública ao Fundo Monetário Internacional não é negociável, devido aos estatutos desta organização.

Outros dois temas da reunião foram os fundos estruturais e a necessidade de consensos políticos.

O primeiro-ministro explicou os critérios que presidiram ao acordo com a União Europeia sobre os fundos estruturais até 2020, sendo a actuação do Governo neste domínio elogiada por todos os conselheiros. Mesmo o secretário-geral do PS reconheceu que o dossier foi bem conduzido pelo Governo de Passos Coelho, elogiou o documento elaborado pelo executivo e assumiu que, neste assunto, houve diálogo entre o Governo e o PS.

Na sua intervenção de fundo, Cavaco Silva já tinha feito questão de insistir na necessidade de consensos entre as forças político-partidárias.
No final da reunião, alertou que, se algum conselheiro não se revisse no texto, não haveria comunicado. A redacção proposta por Cavaco Silva para o ponto 4 dizia que "o Conselho de Estado apela a entendimentos interpartidários e de concertação social", mas a expressão foi imediatamente rejeitada pelo secretário-geral do PS. Face à ausência de consenso, o presidente guardou o papel no bolso.
Gerou-se então algum burburinho entre os presentes, tomando Manuel Alegre a iniciativa de propor que fossem retiradas as palavras que causavam o desacordo. A frase foi alterada para "o Conselho de Estado exorta todas as forças políticas e sociais, no quadro da diversidade e pluralidade democrática, a que preservem entre si as pontes de diálogo construtivo e a que empenhem os seus melhores esforços na obtenção de entendimentos".
Embora todos os conselheiros reconhecessem a necessidade de consensos, foi opinião generalizada que não existem actualmente condições para consensos políticos.

*

Os empréstimos do MEEF/FEEF começarão a ser pagos em 2026 e o pagamento processar-se-á ao longo dos 20 anos seguintes. Como se observava nos gráficos deste artigo e se pode confirmar no boletim mensal de Junho do IGCP que qualquer conselheiro deveria ter lido antes de entrar neste Conselho de Estado:



A maturidade dos empréstimos do MEEF será estendida por um prazo de 7 anos, em média, não se esperando que Portugal tenha de refinanciar esses empréstimos antes de 2026.
Este gráfico mostra que os empréstimos da troika têm permitido alargar os prazos de pagamento da dívida pública.


A troika emprestou quase 78 mil milhões de euros a Portugal com a TIR (juros e comissões) média de 2,8%.


Os erros da monarquia constitucional, consubstanciados na bancarrota parcial de 1892, e o caos em que se afundou a primeira República foram pagos pelos nossos pais e avós durante os 48 anos do Estado Novo.
Os políticos pós-abrilada só precisaram de 37 voltas em torno do Sol para atirarem o País para três bancarrotas — 1977, 1983-85 e 2011-14. A última foi de caixão à cova: só ao fim de 35 anos a dívida à troika estará paga.

Quanta incompetência, quanta leviandade a transparecer nas palavras de alguns conselheiros de Estado. Falam do que não sabem, mas sabem acautelar os seus interesses — é o povinho quem sai chamuscado. Primazia aos interesses pessoais ou partidários, logo se verá o resto. E votámos nós em alguns destes cavalheiros.
Esperemos que os eleitores tenham aprendido a lição, decidam controlar a politicagem e passem a desconfiar de promessas mal explicadas. E transmitam o conhecimento às gerações futuras para que estas não tenham de suportar mais bancarrotas.



Referências
  1. Pertencem ao Conselho de Estado:
    • por inerência dos cargos que desempenham, a presidente da Assembleia da República, o primeiro-ministro, o presidente do Tribunal Constitucional, o provedor de Justiça, os presidentes dos governos regionais e os antigos presidentes da República eleitos na vigência da Constituição;
    • cinco cidadãos designados pelo presidente da República: são, actualmente, João Lobo Antunes, Marcelo Rebelo de Sousa, Leonor Beleza, Vítor Bento e António Bagão Félix;
    • cinco cidadãos eleitos pelo actual parlamento: António José Seguro, Manuel Alegre, Francisco Pinto Balsemão, Luís Marques Mendes e Luís Filipe Menezes.


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