domingo, 12 de outubro de 2014

Foi disponibilizado o arquivo da Casa da Roda do Porto


Durante séculos, milhares de bebés foram deixados durante a noite à porta de igrejas e conventos pelas mães que não tinham condições para os criar. No Porto, há registos comprovativos de que o município pagou a mulheres para cuidarem dessas crianças, pelo menos desde o século XVI.



A partir do século seguinte, mais precisamente a 6 de Julho de 1689, a cidade passou a ter uma casa dedicada a receber esses bebés. Chamava-se Roda dos Expostos, estava situada na Rua dos Caldeireiros, em frente ao Padrão de Santo Elói, e tinha ligação directa ao antigo hospital Dom Lopo.
Nas roupas do bebé, as mães punham, em geral, um pequeno bilhete ou um sinal que o identificasse, caso um dia algum familiar o quisesse resgatar. Estes documentos eram anexados aos relatórios de admissão dos enjeitados — as chamadas "Partes" — escritos pela responsável da Casa da Roda.

A Roda foi mudando de morada e de gestão e, no séc. XIX, o serviço, então designado Hospício dos Expostos, ficaria sob a alçada da Junta do Distrito, cujo arquivo foi herdado pelas assembleias distritais. Foi na antiga sede da extinta assembleia distrital do Porto, na Rua Antero de Quental, que todo este espólio se conservou até que, há três anos, se iniciou o processo de transferência para o Arquivo Distrital do Porto (ADP). Uma parte destes registos está agora disponível, graças a um projecto da directora Maria João Pires de Lima e de técnicos do ADP que contou com a colaboração de professoras e alunas da Universidade do Porto.

A organização, descrição e digitalização de uma parte deste acervo permite-nos consultar, presencialmente ou online, mais de oito mil processos de entrada na Casa da Roda. E ficar a saber um pouco da história de Augusto, de Carlota, de Albino (que ali entrou com um galão preto), de Joaquim Arnaldo (entregue com uma fita cor-de-rosa), de Barnabé e de Guilherme (entregue com um ramo de salsa), os bebés identificados no relatório da directora do dia 18 de Abril de 1826, que inclui ainda a entrada de Francisca no dia anterior.

As casas situavam-se em zonas que permitissem evitar a vigilância de vizinhos e até os quadrilheiros da polícia tinham ordem para não passar pela rua.
Sabe-se, pelas descrições existentes em várias fontes, que as amas de leite dormiam junto à roda e eram acordadas pelo soar de uma campainha activada pela rotação do mecanismo. E logo começavam a cuidar dessas crianças, muitas delas em estado debilitado e que acabavam por morrer nas horas seguintes. As sobreviventes eram entregues a uma família — a ama de fora — escolhida em concelhos dos arredores do Porto, sempre no campo, que ficava identificada nos registos de saída da casa. A partir dos sete anos, podiam passar a viver com essa família, se fosse da sua vontade e tivesse condições para tal, ou ser entregue a outra família.

O arquivo da Casa da Roda abre a porta para o universo daquela instituição só de mulheres, liderada por essa figura tutelar, a ama-seca, ou directora. Além de organizar a logística da casa, esta escrevia também um relatório diário de entradas e saídas dos bebés expostos, era responsável pela escolha das amas mais confiáveis para recolher os expostos, assistia aos baptismos, e colocava uma medalha no pescoço das crianças com o seu número de identificação.

Durante o projecto “Partes da directora”, apoiado com 15 mil euros pela Fundação Calouste Gulbenkian, foi feito o tratamento arquivístico e de conservação e restauro de 6063 processos, constituídos pelos relatórios diários enviados pela directora da Casa da Roda ao responsável pela instituição (o provedor da Santa Casa da Misericórdia ou o vereador da Câmara Municipal do Porto), entre 1813 e 1884. Agora o ADP expõe este material, até 6 de Novembro, nos claustros do edifício onde está instalado, na Rua das Taipas.
Entretanto trataram-se mais dois mil processos. Todos podem ser consultados presencialmente e 1940 estão já disponíveis aqui, usando o código de referência PT/ADPRT/ACD/CRPRT ou colocando, no campo título, o termo Casa da Roda do Porto.

Actualmente muitas pessoas estão a aventurar-se nas profundezas genealógicas da sua família, graças à disponibilização online dos registos de baptismo, casamento e óbito de muitas paróquias do país, e já se depararam com um antepassado referenciado, ao ser baptizado, como exposto. Se tiver sido deixado aos cuidados da Roda do Porto, o arquivo ora disponibilizado torna possível desvendar um pouco mais da vida desse antepassado.


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