segunda-feira, 22 de setembro de 2014

O caso Tecnoforma — 1. Entrevista de Fernando Madeira à SÁBADO


Dada a importância para o esclarecimento do caso Tecnoforma, reproduzimos, com a devida vénia, esta entrevista feita por António José Vilela, jornalista da SÁBADO, e publicada em 7 de Maio de 2014 no nº 523 da revista:


"No fim do ano passado, Fernando Madeira, o ex-sócio maioritário da empresa Tecnoforma, foi ouvido como testemunha no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), que está a investigar projectos de formação profissional pagos à empresa com fundos comunitários. Com 69 anos, o empresário reformado respondeu às perguntas do Ministério Público (MP), que quis sobretudo saber os pormenores da criação do Centro Português para a Cooperação (CPPC), uma organização não governamental (ONG) financiada pela Tecnoforma e que foi dirigida nos anos 90 por Pedro Passos Coelho.

Para falar à SÁBADO, Fernando Madeira colocou apenas duas condições: a gravação do som seria feita apenas para melhor reproduzir as suas palavras e ele poderia mandar parar a gravação após qualquer das questões: fê-lo apenas uma vez, quando foi interrogado sobre se Passos Coelho — que era então deputado em exclusividade de funções no Parlamento — tinha sido pago para presidir à ONG.





Porque é que decidiu fundar em 1996 o Centro Português para a Cooperação, uma organização não governamental?
Nós, na Tecnoforma, trabalhávamos sobretudo em Angola e começámos a sentir que havia problemas em avançar com alguns projectos na área da formação profissional. Pensámos que poderíamos resolver esses problemas se abríssemos uma ONG, pois estas organizações eram mais baratas em termos de pessoal e tinham mais facilidade de acesso a verbas e a financiamentos da então Comunidade Europeia. Na altura, falei com o sr. Sérgio Porfírio, que era meu director comercial na Liana [empresa do grupo Tecnoforma] e ele disse-me que tinha umas pessoas que podiam estar eventualmente interessadas em participar. Quem é que depois o Sérgio me apresentou? O advogado João Luís Gonçalves [ex-secretário-geral de Pedro Passos Coelho quando este dirigiu a JSD entre 1990/95] e depois o sr. Pedro Passos Coelho.

O senhor não conhecia Pedro Passos Coelho nessa altura?
Não, nada, nada.

Mas sabia que ele tinha dirigido a JSD e que era deputado do PSD?
Sabia, claro.

E quando é que falaram pela primeira vez?
Tivemos um primeiro encontro, acho que em 1996, num restaurante no Porto Brandão [concelho de Almada]. Almoçámos e falámos do que é que se pretendia.

O que é que lhe disse que pretendia com o tal Centro Português para a Cooperação (CPPC)?
O objectivo era explorar as facilidades de financiamentos da União Europeia para projectos em Angola ou nos PALOPs [Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa].

Mas a ONG era uma organização de solidariedade ou uma forma expedita de conseguir negócios para a Tecnoforma?
Aquilo que ela devia fazer era simples: nos projectos que visassem as áreas da formação profissional, ela tentava arranjar os financiamentos para esses projectos. Depois, para implementar esses projectos, a ONG socorria-se da Tecnoforma para fornecer o know-how.

Ou seja, a ONG contratava depois a Tecnoforma para fazer na prática os tais projectos.
Sim, naquilo que fosse do âmbito da Tecnoforma.

Mas Passos Coelho disse ao Público que encarou com “seriedade o propósito” de ajudar a “criar uma ONG com a finalidade de promover a cooperação” entre Portugal e os PALOPs.
Só posso dizer que ele foi receptivo ao que ouviu e disse logo que tínhamos de arranjar estas e aquelas pessoas e arranjou. Arranjou pessoas que eu não conhecia.

Que género de pessoas eram essas?
Pessoas com influência.

Refere-se aos fundadores, àqueles que fizeram parte dos órgãos sociais da CPPC? Está a falar do então líder parlamentar do PSD, Luís Marques Mendes, e dos também sociais-democratas Ângelo Correia e Vasco Rato [nomeado recentemente pelo Governo para presidir à Fundação Luso-Americana]?
Sim, sim. E do PS, mas era só um, o então deputado Fernando de Sousa. O Pedro dava-se muito bem com ele. Acho que foi o escolhido para presidir à assembleia-geral do CPPC.

Como é que Fernando Sousa entra no CPPC?
Não sei. A única coisa que sei foi que o Pedro disse que ia tratar das pessoas necessárias. E depois apareceu o Fernando de Sousa e apareceu a Eva [Eva Cabral, então jornalista do Diário de Notícias e hoje assessora do primeiro-ministro].

Outro membro do CPPC era o advogado Fraústo da Silva, amigo de Passos Coelho e presidente do Conselho de Jurisdição da JSD quando este foi seu presidente (1990/95).
Também foi trazido pelo Pedro. A escritura do CPPC foi feita no escritório dele, na Av. da Liberdade, em Lisboa. Era lá que eram feitas as reuniões anuais obrigatórias.

Todos os fundadores iam às reuniões anuais?
Não, houve pelo menos um que eu nunca lá vi: Júlio Castro Caldas [então bastonário da Ordem dos Advogados, ex-deputado do PSD e ex-ministro da Defesa do governo PS liderado por António Guterres].

Até o Grupo Visabeira surge nos estatutos do CPPC como um dos fundadores.
Tive um jantar em Lisboa com o Pedro e o João Luís e duas pessoas do grupo Visabeira das quais já não me recordo os nomes. Penso que um deles era um director financeiro. Foi o Pedro que os trouxe.

Do que é que se falou nesse jantar?
Acabou por se falar de tudo e até de projectos relacionados com a Tecnoforma. Nós estávamos em vias de nos expandir para o Sul de Angola e uns funcionários nossos já tinham visto no Namibe uns blocos de granito que podiam ser interessantes em termos de negócio.

No seu entender, Pedro Passos Coelho queria no CPPC gente com influência para quê?
Que pudessem de facto, sei lá, movimentar, abrir ou facilitar a vinda de projectos para a ONG no âmbito da formação profissional e dos recursos humanos e que depois esses projectos pudessem ter a participação da Tecnoforma.

Volto a perguntar, Passos Coelho sabia que esta ONG era criada com esse intuito?
Tanto é assim, que eu cheguei a ir com ele a Bruxelas para um encontro com o comissário europeu João de Deus Pinheiro [militante do PSD, ex-ministro da Educação e dos Negócios Estrangeiros em três governos de Cavaco Silva e Comissário Europeu entre 1993/2000].

E foram lá fazer o quê exactamente?
Fomos lá apresentar o CPPC, o que nos propúnhamos fazer e saber da sensibilidade dele, nomeadamente que possibilidades de financiamentos havia para os PALOPs. E o João de Deus Pinheiro até nos deu logo uma ideia, dizendo que a Comissão Europeia estava a pensar num projecto para Cabo Verde, que era a criação de um instituto para formação de funcionários públicos. E que este instituto deveria servir também para formar pessoas para os outros PALOPs porque os quadros deles da administração pública eram muito deficitários. Disse-nos ainda que seria bom que criássemos um instituto em Cabo Verde e que a Comissão Europeia estava disposta a apoiar financeiramente uma coisa dessas.

Esse encontro com João de Deus Pinheiro foi combinado por Passos Coelho, que era então vice-presidente do grupo parlamentar do PSD?
Claro, eu não conhecia o Deus Pinheiro.

Em Bruxelas, reuniram onde?
Fomos ao gabinete dele, na sede da Comissão Europeia. O Pedro é que o conhecia, o Pedro é que abria as portas todas.

E esse projecto chegou a avançar?
Ainda fomos a Cabo Verde, mas não avançou. Reunimos na cidade da Praia com uns directores do Ministério da Educação, mas acho que eles estavam era interessados em criar pólos universitários e não institutos intermédios de formação profissional. As coisas não funcionaram.

Foi a Cabo Verde também com Passos Coelho?
Sim e com um cantor, o Paulo de Carvalho.

Porque é que ele foi com vocês?
Isso aí é outra história de que não quero falar. Ele apareceu no aeroporto de Lisboa. Acho que ele foi também para desbloquear, para tentar, mas dá-me a impressão que havia uma segunda agenda entre eles. Em Cabo Verde, depois das reuniões, eles foram depois para outro lado.

Já conhecia o Paulo de Carvalho?
Não, não, só da televisão.



Marques Mendes (na foto) esteve na escritura do CPPC?
Sim, esteve lá. A única coisa que lhe digo é isto: paguei muitos almoços e jantares. Eu estava com o Pedro talvez de 15 em 15 dias ou uma vez por mês. Ele também aparecia na sede da Tecnoforma, mas era mais em restaurantes. Ou então íamos beber um copo. Ele vivia ainda em Campo de Ourique com a Fati [Fátima Padinha, do grupo As Doce e primeira mulher de Passos Coelho].

Também se encontrava com ele na Assembleia da República?
[Pausa] Encontrei-me com o Pedro várias vezes no parlamento, acho que era no grupo parlamentar do PSD.

Só com ele ou com mais gente?
Era com ele e, às vezes, também com o Fernando de Sousa.

Quando convidou Passos Coelho para presidir à ONG prometeu-lhe um ordenado, uma avença ou qualquer outro pagamento?
Vou pedir-lhe para parar a gravação.

Reinício da gravação (13 minutos depois).

Pedro Passos Coelho era remunerado pela ONG ou pela Tecnoforma?
Eu não me recordo de remunerações, não me recordo. Só posso dizer que as despesas que envolviam os custos do CPPC eram todas pagas pela Tecnoforma.

Ele não tinha remuneração oficial, é isso?
Não havia contrato nem nada.

O que não quer dizer que não lhe pagasse.
Eh pá, isso já não me recordo. É um bocado arriscado estar-lhe a dizer e era grave. Não me recordo, já foi há tantos anos.

O advogado João Luís era remunerado no CPPC?
O João Luís era um dos três directores do CPPC [os outros dois eram os então sócios da Tecnoforma, Fernando Madeira e Manuel Castro]. Já não me recordo se era pago, essas coisas já me passaram.

Ao jornal Público, o primeiro-ministro não respondeu se era, ou não, pago no CPPC, mas disse que tinha sido consultor da empresa a partir de 1999 ou do início de 2000. Enquanto foi dono da Tecnoforma, até 31 de Julho de 2001, Passos Coelho foi consultor da empresa?
Nunca foi enquanto eu lá estive.

Ao argumentar isso Passos Coelho poderá estar a tentar justificar alguma contrapartida financeira que, como deputado em exclusividade de funções, não poderia receber a trabalhar para uma ONG?
[Pausa] Não sei se ele recebeu alguma coisa. Mas não foi consultor, assessor ou fez qualquer trabalho para a Tecnoforma enquanto lá estive, isso eu sei.

Mas pode dizer-me quem financiava o CPPC?
Vinha tudo da Tecnoforma.

O CPPC tinha um orçamento anual formal?
A Tecnoforma pagava as despesas que aparecessem. As instalações do CPPC eram também na Tecnoforma, pois ficavam na sede da empresa, no Pragal [Almada].

Ainda não me disse o que é que o CPPC concretizou durante os vários anos em que Passos Coelho lá esteve como presidente?
Até 2001, só me lembro de um projecto de formação profissional no bairro degradado da Pedreira dos Húngaros, em Oeiras. O projecto nasceu de uma ideia do governo de Cabo Verde [muitos habitantes do bairro eram cabo-verdianos] e a partir de uma reunião qualquer que houve entre o Pedro e já não sei quem.

Foi um projecto arranjado por Passos Coelho?
Recordo-me que houve uma reunião entre nós para definir o que era preciso fazer, mas o projecto precisava também da aprovação do Isaltino Morais, que era o presidente da Câmara de Oeiras. O Pedro desbloqueou isso, fez o papel que se esperava dele. E tivemos uma reunião com o Isaltino Morais, que aprovou o projecto e isso foi essencial para a candidatura a um programa financiado pela União Europeia.

Lembra-se qual foi o financiamento atribuído pelo programa europeu para esse projecto?
Não me recordo, mas penso que o projecto rondou os 5 mil contos [25 mil euros], não foi mais do que isso.

Passos Coelho era o seu lobista de serviço?
Não gosto da expressão.

Não gosta porque não gosta ou não gosta porque não corresponde à realidade, àquilo que acha que ele fazia?
Não sei, não sei responder.

Acabaram por fazer algum projecto em África ou em Portugal?
Negativo.

Depois de tantos almoços e ideias, porque é que isso não aconteceu?
Existe um processo de maturação nas empresas e nas organizações. Penso que na altura em que havia condições para o fazer, foi quando vendi a empresa. Este género de coisas não se faz logo, demora tempo.

Depois de vender a Tecnoforma em 2001, e de Passos Coelho ter sido contratado para consultor e depois para presidente da empresa, a facturação da Tecnoforma aumentou bastante em Portugal. Um dos projectos responsáveis por isso foram as acções de formação financiadas pela União Europeia, como o programa Foral, um caso que está a ser investigado hoje pelo Ministério Público (MP).
Disso já não sei nada.

Mas já foi ouvido pelo MP?
Sim, como testemunha no DCIAP, no fim do ano passado.

O que é que lhe perguntaram?
Queriam saber como é que tinha surgido o CPPC.

E contou-lhes a história toda?
Sim, não tenho nada a esconder."





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