"Esta semana, ao que tudo indica, vai haver greve geral. Segundo dizem porque certos segmentos dos trabalhadores por conta de outrem não querem perder os seus direitos. Os aderentes irão com esta greve perder um dia de ordenado sem ganhar absolutamente nada em troca.
Os dirigentes sindicais mostram serviço a quem os sustenta. A economia perde. Lá pelas bandas dos bancos de investimento (os ditos "mercados") diminuirá a diferença de percepção que distingue Portugal da Grécia. É caso para dizer que praticamente todos perdem. Mas faz parte do folclore.
Os trabalhadores têm alguma razão. Por razões que não são facilmente compreensíveis, os direitos de alguns parecem mais sagrados do que os de outros. As empresas sentadas em cima de confortáveis PPP alegam os seus "direitos adquiridos" e, até agora, têm levado a melhor. Os senhores da energia continuam confortavelmente sentados nos seus "direitos adquiridos" contratuais. Outros exemplos existem. É caso para perguntar porque só os cidadãos pagam os desmandos orçamentais. Sobretudo quando aqueles que deles mais beneficiaram se colocam agora confortavelmente longe da factura.
Mas, afinal, de que direitos estamos a falar? Para o conjunto da totalidade dos cidadãos, olhando para a evolução das contas externas desde o 25 de Abril, trata-se do direito a consumir mais do que aquilo que se produz. Podemos discutir, ponto a ponto, os muitos temas que estão em cima da mesa. Mas no final das contas, quando agregamos todos esses "direitos", tudo vai dar simplesmente a isto.
Mas, será que estes "direitos" existiam mesmo? No papel, sim. Na realidade, o benefício efectivo do valor monetário dos mesmos variou ao longo do tempo. As leis, os ACT e demais panóplia da contratação laboral expressam para os trabalhadores direitos cujo benefício efectivo depende das condições em que o empregador opera. Se forem excessivos, o empregador perde competitividade. Se for privado, reduz postos de trabalho, havendo uma apropriação de riqueza por parte de quem mantém o emprego em detrimento de quem o perde. No caso limite existe insolvência e lá se vão os direitos. Se o empregador for público, não reduz a força de trabalho, passando o sobrecusto para os trabalhadores do sector privado que o terão de pagar através de mais impostos. Uns pagam os "direitos" excessivos dos outros, assistindo-se assim a uma transferência de riqueza entre grupos.
Para os trabalhadores, no seu conjunto, os ditos "direitos" nunca foram efectivos. Os dias de férias, os 14 meses de remuneração e demais "regalias" sempre existiram no papel. Mas o seu efectivo benefício económico não. Parte deles era pago através do endividamento externo do País (em dólares). Como esse era difícil de obter, em grande medida devido à falta de produtividade e crescimento da economia, o país entrava em ruptura de pagamentos. Aí entravam em força o FMI (1978 e 1982) e as massivas desvalorizações do escudo. Na realidade, até se poderia pagar 16 meses de salário: desvalorizando-se depois a moeda a inflação decorrente se encarregava de destruir os "direito" ao correspondente poder de compra. A cada "conquista" seguia-se nova desvalorização. Como no papel os direitos se acumulavam, havia quem glorificasse as "conquistas" dos trabalhadores. Por isso, muitos (que não compreendem as implicações bancárias e financeiras de tal opção) defendem agora a saída de Portugal do euro. Com uma desvalorização do Escudo de 30% em relação ao euro não seria necessário mexer nos impostos da maneira "brutal" que agora surge nem eliminar subsídios a ninguém, assim se "mantendo" no papel os privilégios, conquistas e direitos adquiridos que a desvalorização se encarregaria de anular.
Mas, de 1985 para cá as coisas mudaram. A Europa inundou-nos de fundos. Depois, veio a adesão ao euro e ao endividamento fácil. Portugal não produzia o suficiente para fazer face ao que consumia. Mas não havia problema: a Europa fiava. Mas a festa acabou. Os banqueiros da Europa que nos fiavam deixaram de o fazer. Os apelos aos contribuintes alemães para que sustentem a nossa sociedade de consumo não surtem efeito. Não vale a pena ter ilusões. Como disse em 1976 o então primeiro-ministro Mário Soares: "Temos de viver com aquilo que temos". É pouco, face aos padrões de consumo europeus, eu sei. Mas é o que há.
Neste contexto, parece despropositada a realização de uma greve geral onde se juntam os trabalhadores dos sectores público e privados a lutar pelos seus "direitos" que, de forma formal, como agora imposta pelo OE, ou informal, através de uma saída do euro, vão inevitavelmente desaparecer. Os portugueses vão ter de sofrer uma perda de poder de compra de forma a adaptar os hábitos de consumo à sua produção efectiva. Os instrumentos agora utilizados via OE impõem uma determinada forma de repartir essa perda entre os diversos agentes económicos. Mas, seguramente, não é a única.
As próximas "lutas", para fazerem sentido, isto é para permitirem a quem as trava sofrer menor perda de poder de compra do que a situação actual lhe reserva, terão de ser travadas entre classes corporativas opostas. A "guerra" actual não se trava pelo tamanho do bolo, mas sim pela sua repartição. Trava-se formalmente entre as empresas privadas e seus trabalhadores, mas a verdadeira questão que se encontra em cima da mesa é o "trade-off" entre mais "direitos" e mais desemprego (ganhando aqueles que se mantêm no activo) ou menos "direitos" e mais perdedores via desemprego. Trava-se também na repartição das perdas entre os trabalhadores dos sectores público e privado, nos diferentes níveis de qualificação, onde existem gritantes assimetrias (nos dois sentidos).
Trava-se entre as gerações que beneficiaram dos desmandos do passado recente e os mais novos a quem se pretende deixar a correspondente factura para pagar todo o resto da respectiva vida contributiva (excepto para os que optem por nada pagar, emigrando). Trava-se entre contribuintes e pensionistas. Trava-se entre os trabalhadores do sector público que trabalham e aqueles que nada fazem, contribuindo para a redução do poder de compra dos primeiros. E será dos cidadãos contra o Estado, exigindo uma efectiva reforma da Administração Pública que reduza o custo (logo, perda de "direitos") que aquele impõe a todos os cidadãos a fim de suportar uma máquina ineficaz e que alberga excessivo desperdício e recursos falsamente empregues. Esta é, aliás, a única reivindicação colectiva que hoje faz sentido. E ninguém mais do que os sindicatos da Função Pública deveria estar na linha da frente, na defesa dos direitos daqueles que verdadeiramente trabalham no Estado e que são hoje sobrecarregados pelo fardo de sustentar aqueles que por lá pouco ou nada contribuem com o seu trabalho.
Paulo Pinho
Professor da Universidade Nova de Lisboa"
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