quinta-feira, 24 de julho de 2014

O dia em que Ricardo Salgado foi detido






24/07/2014 - 12:59


Sabia-se que, durante o ano 2012, Ricardo Espírito Santo Salgado entregou três rectificações à sua declaração original de IRS de 2011, a última das quais poucos dias antes de ter sido ouvido como testemunha no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP).
Foi a segunda rectificação que provocou alvoroço na comunicação social: entregue em Agosto para declarar 8,5 milhões de euros de rendimentos obtidos em Angola, deu origem a uma liquidação de imposto de cerca de 3 milhões de euros.
Globalmente, a colecta de IRS correspondente aos seus rendimentos foi superior a 4,5 milhões, e não os 183 mil euros associados à declaração inicial.

Em Dezembro de 2012, quando foi ouvido como testemunha no DCIAP pelo facto de ser cliente da Akoya, a sociedade de gestão de fortunas que está no centro da operação Monte Branco, Ricardo Ralgado terá conseguido explicar a origem dos 8,5 milhões de euros que recebeu no exterior e que o levaram a aderir ao Regime Excepcional de Regularização Tributária (RERT) de 2012.
No mês seguinte, em resposta a um seu requerimento, a Procuradoria-Geral da República emitiu um despacho em que considerava que Ricardo Salgado não era suspeito no caso Monte Branco e que não existiam indícios de crimes fiscais.

O RERT III aplicou-se a património existente fora do País a 31 de Dezembro de 2010 e cujos rendimentos não tivessem sido declarados à Autoridade Tributária (AT). Permitia que os seus proprietários regularizassem a sua situação tributária até 30 de Junho de 2012 ficando, em contrapartida, obrigados ao pagamento de uma taxa única de 7,5% sobre o respectivo valor.
Podiam aderir pessoas singulares ou empresas e o património em causa incluía desde os vulgares depósitos bancários a certificados de depósitos, valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros, incluindo apólices de seguros e operações de capitalização.

A adesão ao RERT III fazia-se através da entrega de uma declaração de regularização tributária junto do Banco de Portugal, onde era descrito o património em situação irregular. Pagava-se a referida taxa de 7,5% sobre a totalidade dos valores mas, ao contrário do que acontecera nas duas anteriores edições do RERT, não era necessário proceder ao repatriamento do património para Portugal. Ficava também afastada a possibilidade de procedimento criminal.
As notícias sobre a operação Monte Branco desencadearam uma corrida à regularização tributária de capitais depositados no estrangeiro, originando uma receita fiscal extraordinária de 259 milhões de euros. O sucesso do RERT III foi espantoso.

Ricardo Salgado explicou assim as três rectificações:

"Uma é óbvia, é consequência da adesão ao próprio RERT III. O RERT III teve como referência os patrimónios existentes fora de Portugal à data de 31 de Dezembro de 2010. A data-limite para adesão ao RERT III foi prorrogada até Julho de 2012. Logo, a declaração de IRS de 2011 foi devida antes de finalizado o período legal de adesão ao RERT III. (...) os rendimentos gerados por esses patrimónios em 2011 tiveram de ser acrescidos à matéria colectável em sede de IRS de 2011. Como a declaração tinha sido entregue antes da finalização do próprio RERT, parece-me óbvio e inevitável que tenham sido declarados através de uma declaração correctiva."

A segunda regularização "tem que ver com acréscimos patrimoniais apenas apurados posteriormente, referentes ao ano fiscal de 2011. Como tal, tiveram de ser objecto de correcção à declaração de impostos desse ano."

Por último, vem um problema informático: "O preenchimento das declarações fiscais por processo electrónico é padronizado e algo limitativo quanto às opções e alternativas de preenchimento. Tratando-se de rendimentos obtidos no estrangeiro, resultantes da concretização de investimentos e actividades pessoais, o enquadramento nas categorias de rendimentos sujeitos a imposto, disponíveis da versão electrónica, não foi automático. (...) a liquidação automática processada, remeteu para uma taxa de IRS marginal inferior à taxa aplicada à minha declaração principal, o que considerei inadequado."
Ou seja, os rendimentos estavam a pagar um imposto inferior ao suposto. Por isso, "e mais uma vez de forma totalmente voluntária e fiscalmente transparente, apresentei uma terceira declaração correctiva para aumentar o montante do imposto liquidado".


Não eram 8,5 milhões, mas quase 14 milhões de euros

Havia, porém, um pequeno problema. Não foram 8,5 milhões de euros. Foi uma prenda no valor de quase 14 milhões de euros que Ricardo Salgado recebeu do construtor José Guilherme agradecido com o facto do banqueiro o ter aconselhado a desistir de investir na Europa de Leste e a optar por apostar em Angola.

A história deste caso está contada no livro "O Último Banqueiro", da autoria das jornalistas do Negócios, Maria João Babo e Maria João Gago, como se pode ler neste excerto
:
"Liberalidade". Foi com esta expressão jurídica que o banqueiro justificou, no Banco de Portugal e no DCIAP, ter recebido, não 8,5 mas um total de 14 milhões de euros do construtor. Em causa estava "um acto de carácter espontâneo e a título gratuito que venha a favorecer ou a beneficiar economicamente alguém". Resumindo, uma oferta em dinheiro.

José Guilherme e o presidente do BES conhecem-se há décadas. O construtor consultava frequentemente o banqueiro. Quando decidiu expandir os seus negócios para o Leste da Europa, Ricardo Salgado desaconselhou-o. Em alternativa, recomendou-lhe Angola. E até lhe terá indicado quem contactar em Luanda.

Alguns anos mais tarde, perante o sucesso do investimento, Guilherme fez questão de mostrar ao líder do BES como lhe estava agradecido.

E foi por isso que o presenteou. Com 14 milhões de euros.

Uma oferta do construtor, foi também o que Ricardo Salgado alegou ao Banco de Portugal e ao Ministério Público para justificar aquele rendimento.

As explicações do banqueiro nunca saíram da discrição dos gabinetes das autoridades em que foram dadas. À família e à imprensa, o presidente do BES sempre insistiu: "Dei todos os esclarecimentos na altura, não vou dar a mais ninguém".

As dúvidas criadas pela ausência de esclarecimento público, começavam a fazer mossa. E a ser usadas como armas de arremesso pelos opositores do banqueiro. Mesmo os que pertenciam ao clã viram no crescente clima de suspeição uma oportunidade para começar a empurrar Ricardo Salgado para a porta de saída.

A origem daquele rendimento fez correr muita tinta. Para os seus adversários, incluindo o primo José Maria Ricciardi, estava em causa a idoneidade do líder do BES — condição indispensável para o exercício de funções de gestão na banca.

Outro entendimento teve o Banco de Portugal. A 5 de Fevereiro de 2013, a instituição liderada por Carlos Costa decidiu tornar pública uma nota em que considerava não existirem fundamentos que justificassem a abertura de processos para reavaliar a idoneidade dos órgãos sociais do banco.

Apesar da declaração do BdP, a regularização da declaração de IRS de Salgado tinha sido tornada pública, lançando dúvidas sobre a origem dos seus rendimentos. A mancha reputacional alastrava-se ao BES.

Esta quinta-feira, 24 de Julho, o antigo presidente executivo do BES voltou a ter de dar explicações sobre as transferências que recebeu de José Guilherme, e não só, desta vez ao juiz Carlos Alexandre e já com o estatuto de arguido.
Ricardo Salgado começou a ser ouvido no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) a partir das 10:30, depois de ter sido detido para interrogatório esta manhã. Em nota enviada à comunicação social, a Procuradoria-Geral da República (PGR) confirmou a detenção:
No âmbito do Processo Monte Branco, o Ministério Público (DCIAP) tem vindo a realizar várias diligências que culminaram com a detenção de Ricardo Salgado no dia de hoje. O detido será presente ao juiz de instrução criminal.

O Ministério Público terá investigado, no âmbito da operação Monte Branco, 12 transferências de 27,3 milhões de euros, efectuadas entre Julho de 2009 e Julho de 2011, a partir do Banco Espírito Santo Angola para contas de empresas com sede no Panamá e cujos beneficiários são Ricardo Salgado e Amílcar Morais Pires.

24 Jul, 2014, 20:23
O banqueiro foi detido, pela manhã, na sua casa em Cascais. Na véspera o Ministério Público fez buscas nas salas do Hotel Palácio, no Estoril, onde Ricardo Salgado estabeleceu o seu escritório e se tem reunido com os seus advogados, e no edifício da Rua de São Bernardo onde funciona o conselho superior dos cinco ramos da família Espírito Santo.


No final do interrogatório que demorou cerca de seis horas separadas por um intervalo para almoço, entre as 13:00 e as 14:00, a PGR divulgava uma segunda nota (negrito meu):

No âmbito do processo Monte Branco foram identificados movimentos financeiros que, numa primeira fase, levaram à inquirição como testemunha de Ricardo Salgado.

Após essa audição prosseguiram diligências de investigação com a cooperação da Autoridade Tributária e Aduaneira, designadamente com a obtenção de elementos de prova por via da cooperação judiciária internacional, tendo sido recolhidos novos indícios que justificaram um conjunto de diligências de busca que, ontem, foram levadas a cabo.

Nesse âmbito, foi ainda suscitada ao Tribunal Central de Instrução Criminal, e deferida por este, a emissão de mandados de detenção de Ricardo Salgado, que passou a assumir a qualidade de arguido.

Tais mandados de detenção foram cumpridos com a colaboração da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Polícia de Segurança Pública, na data de hoje.

O arguido foi presente, de seguida, a interrogatório judicial no TCIC, tendo manifestado o propósito de prestar declarações e de colaborar com a justiça para o esclarecimento dos factos.

Findo o interrogatório judicial, em acordo com a promoção do Ministério Público, foram aplicadas ao arguido as medidas de coacção de sujeição a caução, no montante de três milhões de euros, proibição de ausência do território nacional e proibição de contactos com determinadas pessoas.

Está em causa a eventual prática de crimes de burla, abuso de confiança, falsificação e branqueamento de capitais.

Ricardo Salgado veio aqui colaborar com a justiça e prestar a sua visão sobre os factos. Seguirá agora normalmente para sua casa. Continuará a colaborar com a justiça”, dissera à saída Francisco Proença de Carvalho, um dos seus advogados.

O Ministério Público está a investigar mais quatro casos que envolvem o Grupo Espírito Santo:
  • a venda de acções durante a operação de entrada em bolsa da EDP Renováveis montada pelo BESI presidido por José Maria Espírito Santo Ricciardi;
  • a privatização da EDP e REN que também envolve o BESI, havendo suspeitas de abuso de informação e tráfico de influências;
  • a compra dos dois submarinos alemães em que o presidente e dois administradores da Escom foram indiciados por corrupção activa, tráfico de influências e branqueamento de capitais;
  • a venda da participação de 67% da Rioforte na Escom à empresa angolana Sonangol em que esta entregou, em 2011, cerca de 60 milhões de euros, a título de sinal, que terão sido depositados no Crédit Suisse através da Akoya. Não só esta verba não entrou na Rioforte, como a venda nunca foi concretizada.


O que é a operação Monte Branco?

A operação Monte Branco foi criada com o objectivo de investigar um esquema de fuga ao fisco e branqueamento de capitais através da Akoya, uma sociedade suíça de gestão de fortunas pertencente a Michel Canals e Nicolas Figueiredo, antigos quadros do banco suíço UBS, e também a Álvaro Sobrinho, presidente não executivo do BES Angola.

A investigação começou depois da detenção de Duarte Lima, em Novembro de 2011, por alegada fraude relacionada com o caso BPN — um crédito do BPN ao Fundo Homeland de seu filho Pedro Lima. Ouvido pelo Ministério Público, Lima terá falado dos seus contactos com a Akoya Asset Management, a sociedade gestora de fortunas de Canals que abriu, pelo menos, uma conta em seu nome no estrangeiro. Ainda terá revelado aos investigadores que entregou 2 milhões de euros daquele crédito a Francisco Canas, dono de uma loja de medalhas na Baixa lisboeta, verba que terá sido posteriormente depositada na Suíça através da Akoya.

O esquema era simples. Os clientes portugueses entregavam o seu dinheiro, não declarado ao Fisco, a Michel Canals, que o enviava para os seus sócios na Suíça. Os valores eram depositados em bancos de Genebra e Zurique e, posteriormente, transferidos para uma conta no BPN IFI, de Cabo Verde.
Sendo este banco operado a partir de agências do BPN em Portugal, as verbas voltavam a ser transferidas, agora para contas no BCP e, já devidamente integradas no circuito bancário, eram novamente entregues aos clientes de Canals.

Uma vez desvendado como funcionava a rede, a partir de Maio de 2012 o Ministério Público constituiu cinco arguidos: Michel Canals, Nicolas Figueiredo, Francisco Canas, conhecido como "Zé das Medalhas", José Pinto e Ricardo Castro.
Segundo explicou o Ministério Público, em nota de Dezembro do ano passado, por esta rede circulou um conjunto de movimentos financeiros, entre 2006 e 2012, realizados sob um esquema de ocultação da origem dos fundos e sua conversão em numerário, abrangendo globalmente montantes "superiores a 30 milhões de euros".

Foram estas investigações realizadas no âmbito da operação Monte Branco que levaram a que se realizassem escutas telefónicas a altos dirigentes do BES, também clientes da Akoya, e conduziram às operações de branqueamento de capitais com origem no BES Angola.


24 Jul, 2014, 20:25
A operação Monte Branco teve origem na investigação do BPN e conduziu à descoberta da maior rede de branqueamento de capitais de que há memória em Portugal.


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Actualização em 25 Julho 2014:

A caução de 3 milhões de euros que o juiz Carlos Alexandre impôs a Ricardo Salgado esta quinta-feira para o manter em liberdade é uma das maiores de sempre da justiça portuguesa e terá de ser depositada à ordem do tribunal até 8 de Agosto.

O juiz Carlos Alexandre determinou que o prazo para cumprir é de 15 dias e não admitiu que fossem apresentados outros valores, como por exemplo acções, obrigações ou hipoteca de imóveis.

No entanto, os advogados de Ricardo Salgado poderão pedir uma revisão da medida de coacção. Se o juiz entender que, nessa altura, já não se justifica a caução, poderá autorizar que a medida seja levantada. Caso contrário, a caução manter-se-á até ao final do processo, sendo depois devolvida, ou não, conforme a pena que venha a ser aplicada.

No final do julgamento, se o arguido for condenado a uma pena de multa, o respectivo valor será deduzido ao valor da caução. Caso a pena seja apenas de prisão, o que normalmente não acontece, a caução será devolvida na totalidade, explicou o especialista em processo penal Pedro Garcia Marques.
Se o arguido for absolvido, a caução será igualmente devolvida mas não haverá pagamento de quais quer juros. "Considera-se que é um custo para o arguido, tal como os custos que teve, por exemplo, com advogados", explica Garcia Marques.






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