domingo, 2 de julho de 2017

Tragédia em Pedrógão Grande - III. O IPMA


O Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) fez uma análise exaustiva dos dados obtidos nas suas estações, detectores de descargas eléctricas e radares meteorológicos em 17 de Junho de 2017, dia em que deflagrou o incêndio no concelho de Pedrógão Grande, dados que coligiu nos mapas e tabelas de um relatório hoje publicado.
As conclusões daí resultantes também foram resumidas pelo presidente daquele instituto numa carta onde afirma ser pouco provável que o incêndio, iniciado na aldeia de Escalos Fundeiros às 14:43, tenha sido provocado por uma descarga eléctrica das trovoadas secas que decorreram em Portugal nessa tarde:
Perto deste local [Escalos Fundeiros], apenas se detectaram descargas nuvem-solo às 17:37, 18:53 e 20:54 (horas locais), a distâncias de 12, 7 e 8 km, respectivamente. Uma vez que a eficiência da rede é de cerca de 95% para as descargas nuvem-solo, podemos concluir que existe uma probabilidade baixa (mas não nula) da ocorrência de uma descarga nuvem-solo na proximidade do local de deflagração do incêndio.

Já a velocidade de propagação do fogo poderá ter sido aumentada por algum downburst dos vários que ocorreram na Região Centro e parte do Alto-Alentejo na tarde do dia 17 de Junho.





O relatório do IPMA explica que um downburst é um fenómeno de vento com rajadas rápidas — uma corrente de ar descendente (downdraft) extremamente forte que, ao atingir o solo, cria um escoamento horizontal divergente (outflow convectivo) muito intenso.

Como se origina um downburst?
Uma massa de ar aquecido torna-se menos densa, por isso sobe na atmosfera. Se o ar também estiver seco e contactar nuvens, parte delas evapora-se. A massa de ar arrefece bruscamente, portanto a descida é rápida, criando-se uma célula convectiva onde há rajadas. Eis uma imagem elucidativa:




Estas rajadas de vento, que haviam sido previstas pelo IPMA, podem explicar a propagação veloz do fogo na direcção da estrada nacional 236-1 que não foi cortada ao trânsito, onde sucumbiram 47 dos 64 mortos:
Os modelos de previsão de tempo indicaram existência de instabilidade durante a tarde do dia 17, favorecendo o desenvolvimento de nuvens convectivas e a ocorrência de precipitação e trovoada. Devido às condições de temperatura e humidade, a base das nuvens seria da ordem de 3000m, aumentando a probabilidade de correntes descendentes. (...)

A análise da rede de estações de superfície do IPMA permite identificar a existência de uma série de perturbações de origem convectiva (outflows convectivos) cujas frentes de rajada afectaram a Região Centro e parte do Alto-Alentejo. O valor mais significativo foi observado em Proença-a-Nova, com 85 km/h. Estas perturbação são o reflexo de correntes descendentes extremamente fortes e organizadas (downbursts) que ao atingir o solo criam escoamento horizontal divergente. (...)

O radar meteorológico de Coruche permite identificar às 19:20 (hora local) o padrão da pluma de incêndio, entre os níveis baixos e os 5000m de altitude, abaixo de outro padrão associável à bigorna das células convectivas, entre os 5km e os 11km. O padrão da pluma de incêndio apresenta propagação de leste para oeste. Verificam-se de seguida duas intensificações da pluma. A primeira com inicio às 19:20-19:30 (hora local) tendo atingido o auge pelas 19:50-20:00, período em que alcançou 13 km de extensão vertical, acima do nível da bigorna da nuvem convectiva. A segunda intensificação teve o máximo às 20:40, período em que alcançou 14km de extensão vertical. A análise da altitude do topo dos ecos do radar, e os cortes verticais dos campos da reflectividade e da velocidade apontam para que esta amplificação ser o resultado de escoamento horizontal divergente que se propagou sobre a região do incêndio de Pedrógão Grande.

De uma forma muito sintética (...) podemos concluir que a interacção entre o escoamento divergente gerado pelas células convectivas e o incêndio entretanto iniciado, conduziu a uma grande amplificação da pluma do incêndio, em termos de extensão vertical e velocidade de propagação, não susceptível de previsão por modelos numéricos de previsão do tempo, e criando condições excepcionais de propagação no terreno.

Evolução da reflectividade sobre a área de Pedrógão Grande

Para minorar as dificuldades observacionais, foram utilizados outros tipos de produto radar neste estudo, entre os quais o dos Topos dos Ecos (TOPS). Durante a maior parte do período em análise, os topos não ultrapassaram os 10 km de altitude, em particular sobre a área de referência representada na Fig.1.



Fig.1 Área de referência considerada no presente estudo. Vê-se as principais localidades, vias rodoviárias e orografia.
O segmento AB, a azul, é a secção do plano de corte seleccionado como referência dos cortes verticais efectuados sobre o campo da reflectividade radar.



As Fig.2 e Fig.3 mostram a evolução da reflectividade e a extensão vertical dos ecos durante o período 18:20-20:00 UTC, segundo a secção de corte explicitada na Fig.1.
No corte vertical das 18:20 UTC observa-se o padrão de pluma de incêndio, entre os níveis mais baixos e os 5000 m de altitude, situado por debaixo de um outro padrão de reflectividade, associável à bigorna das células convectivas, situado a níveis entre os 5 e os 11 km. Estas células propagavam-se de leste para oeste (sentido de A para B, na secção de corte). Durante este período, observou-se uma evolução muito significativa da reflectividade e, particularmente, da extensão vertical do padrão associável a pluma de incêndio (ou pluma de incêndio misturada com hidrometeoros).
A primeira de duas intensificações observadas no padrão de pluma iniciou-se pelas 18:20-18:30 UTC, tendo atingido o auge pelas 18:50-19:00 UTC, período em que alcançou cerca de 13 km de extensão vertical, situando-se portanto acima do nível da bigorna. Pelas 19:10 UTC a reflectividade do padrão de pluma, nos seus níveis mais baixos, decresceu um pouco, assim como a respectiva altitude (Fig.2).
A segunda intensificação iniciou-se pelas 19:20-19:30 UTC, tendo atingido o auge pelas 19:40 UTC, instante em que o topo do padrão de pluma (ou pluma misturada com hidrometeoros) se situava a cerca de 14 km de altitude (Fig.3).



Fig.2 Imagem dos TOPS do radar de Coruche/Cruz de Leão, 17 junho 2017.
Cortes verticais sobre o campo da reflectividade radar (dBZ) efectuados na área de referência, para o período 18:20-19:10 UTC. Escalas horizontal e vertical em km.
Estão assinalados os extremos da secção AB (com extensão aproximada de 30 km), Vila Facaia (V.F.) e a estrada N236-1 (E.N.). A seta vermelha assinala axóide da pluma (nuvem de partículas de fumo oriundo do incêndio) a baixa altitude.
Não foi objectivamente possível identificar a frente de rajada de um outflow convectivo, escoamento tipicamente em camada a baixa altitude, que possa ter afectado a área. Este facto pode ter ficado a dever-se à orientação desfavorável, face ao feixe radar, dos rumos do vento envolvidos e, possivelmente, ao facto de as observações radar não detectarem circulações abaixo de 900-950m de altitude, na elevação mais baixa, sobre a região. No entanto, este facto objectivo não exclui a possibilidade de que um fenómeno deste tipo possa ter-se propagado sobre a área e ter tido impacto na evolução da pluma, anteriormente referida.

O relatório termina com estas considerações:
No dia 17 de Junho de 2017, com a rede de estações de superfície do IPMA, foi possível identificar uma série de perturbações de origem convectiva (outflows convectivos), cujas frentes de rajada afectaram diversos locais de parte do centro do território do continente e parte do Alto-Alentejo. Na estação de Proença-a-Nova foi observada uma rajada de 85 km/h, que se destaca entre os demais valores significativos observados noutros locais. Essas perturbações foram o reflexo de downbursts, fenómenos em que correntes descendentes extremamente fortes e organizadas, ao atingir o solo, criam um escoamento horizontal divergente.

Foi efectuada uma primeira análise observacional baseada no campo da reflectividade observado pelo radar de C/CL [Coruche/Cruz do Leão]. Esta análise permitiu a elaboração de um mapa de isócronas representativas de diversos outflows convectivos cuja frente de rajada foi possível identificar. Posteriormente, foi efectuado um outro tipo de análise, essencialmente fundamentado na identificação e interpretação de padrões de velocidade Doppler, tendo em vista a identificação de downbursts, especialmente na área de referência apresentada, região onde esta foi uma ferramenta essencial, dada a ausência de uma suficiente distribuição de retrodifusores. Pelas 18:36 UTC, sobre uma região situada um pouco a sul de Cardigos/Mação, foi identificada uma assinatura de downburst em que foi observado o valor mais elevado da velocidade do vento instantâneo estimado por radar (aproximadamente 117 km/h a cerca de 650 m da altitude) em associação a um aglomerado convectivo. Não obstante esta constatação, não foi possível identificar outras assinaturas relevantes noutros sectores do aglomerado convectivo, circunstância que será explicável pelo facto de nas outras áreas o rumo dos ventos em níveis baixos ser presumivelmente praticamente perpendicular ao feixe radar.

Ainda assim, com o recurso a produtos de altitude do topo dos ecos, à execução de cortes verticais sobre o campo da reflectividade e ao do campo da velocidade Doppler, é de admitir a possibilidade de que um outflow convectivo se tenha propagado sobre a região do incêndio de Pedrógão Grande.

*

Estamos perante um relatório cientifico-técnico pormenorizado que conclui que "é de admitir" a possibilidade de ter ocorrido um downburst responsável pela propagação de um outflow convectivo sobre a região do incêndio de Pedrógão Grande.

Conclusão corroborada pelo presidente do IPMA quando refere que alguns dados de radar "apontam" para que certa amplificação observada na pluma do incêndio possa ser o resultado de um escoamento horizontal divergente.

Está encontrado o bode expiatório ideal para carregar 64 mortos no dorso, limpando a incompetência do jurista António Costa quando assinou o contrato do SIRESP, uma rede de emergência e segurança, aceitando uma cláusula que alija os custos das falhas, justamente em caso de emergência, em cima do Estado. Branqueando também a irresponsabilidade da ministra da Administração Interna quando permitiu o assalto aos cargos cimeiros da Protecção Civil escassos meses antes do começo da época de incêndios florestais de 2017.

Os vivos votam consoante o dinheiro que, no momento, têm no bolso. E os mortos não votam. Está tudo bem.



Um comentário relevante lido na notícia do Público:

joaquim alberto pinto vieira 03.07.2017 05:14

Sou um ex observador meteorológico com o curso do Estado e especialista no lançamento de balões meteo e análise dos seus dados com elaboração da sua carta. A explicação técnica está correcta. O IPMA tinha condições, dentro de um sistema organizado e centralizado, de ir prestando informações aos coordenadores do incêndio sobre a direcção dos ventos e o seu teórico provável caminho. Face às notícias já confirmadas, porém, não houve coordenação quase nenhuma, não houve SIRESP, não houve nada de jeito excepto ordens desconexas face ao desconhecimento da progressão possível teórica do incêndio. Depois actuaram com meios desadequados. Tudo isto no meio de total descoordenação. Se ao menos servir este caso para de imediato se corrigirem e evitar futuros casos...


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