domingo, 9 de fevereiro de 2014

O Atlântida vai partir


Tem alojamento de grande qualidade. Tem salão, casino, pista de dança, restaurante e infantário. E atinge a velocidade máxima de 17,78 nós por hora.
Já esteve avaliado em mais de 40 milhões de euros, agora valerá metade no mercado.
Esta semana é colocado à venda em concurso internacional sem valor-base de licitação.






1. A construção

Tudo começou em Abril de 2006 com a assinatura do contrato para a construção de dois ferryboats — o Atlântida e o Anticiclone — que se destinavam a estabelecer as ligações entre as ilhas do arquipélago dos Açores. O armador era a empresa pública açoriana Atlânticoline e a construtora os Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC).

A Atlânticoline havia encomendado o anteprojecto aos russos da Petrovalt. Tratava-se de um documento essencial do caderno de encargos do concurso público internacional que se seguiria.

Quando venceram o concurso público, os ENVC encomendaram o projecto do Atlântida à Petrovalt. Foi sugestão da Atlânticoline, mas era a decisão óbvia: o prazo apertado para a entrega do Atlântida, um mês antes das eleições legislativas regionais de Outubro de 2008, e o facto de o gabinete já ter elaborado o esboço do navio não permitia outra escolha.

O teste-tanque, um conjunto de testes realizados com um modelo em madeira, à escala do navio, em tanque, terá mostrado que o navio, com o perfil de casco e a potência dos motores previstos, iria atingir a velocidade de 21 nós por hora.
No entanto, os ENVC tiveram dúvidas sobre a fiabilidade dos valores do tanque-teste e pediram a sua repetição, mas foram informados pelo instituto russo que fez as provas de que o modelo havia sido destruído, o que contraria a prática comum neste tipo de teste de preservar o modelo por um período de cinco anos.

Suspeitavam que havia um problema estrutural, contudo calaram-se e prosseguiram com a construção do navio. E cederam a pedidos de alterações por parte do armador sem fazerem uma adenda ao contrato:



Para cumprir esse pedido, os ENVC reposicionaram as unidades de ar condicionado e o gerador de emergência, dois decks (pisos) acima do previsto. Como estas máquinas pesam toneladas, subiu o centro de gravidade da embarcação e o navio perdeu estabilidade. Resolveram o problema com 130 toneladas de lastro sólido. Mas aumentaram drasticamente a massa do navio o que, inexoravelmente, iria provocar a diminuição da velocidade.
A substituição do impulsor de proa aumentou o atrito na deslocação na água, agravando a redução da velocidade.

Quando foi submetido a teste, o Atlântida atingiu a velocidade de 16,5 nós a 85% da potência dos motores. Se tivesse atingido uma velocidade entre 18 e 19 nós, caia no domínio de cláusulas indemnizatórias mas o navio seria aceite. Mesmo a 100% da potência, a velocidade ficou pelos 17,78 nós por hora.

Para o Anticiclone, cuja construção foi iniciada com o Atlântida mais ou menos a meio, os ENVC decidiram repetir o teste-tanque. Foi preciso fazer um aumento de 10 m no comprimento e 60 cm na largura do segundo ferry para garantir a estabilidade. Contudo a construção foi interrompida quando, em Maio de 2009, a Atlânticoline rescindiu o contrato.





nº 258, Atlântida, Ro-Ro Day Car & Passengers Ferry, 86,7 m, 630 TDW, ano 2009


2. O contrato

O contrato com a Atlânticoline foi formalizado, em Abril de 2006, por Telles Menezes, administrador dos ENVC e também da empresa pública Empordef, a holding das indústrias de Defesa que tutela os ENVC.
Era presidente do conselho de administração dos estaleiros Fernando Geraldes, nomeado por Paulo Portas, então ministro da Defesa do Governo Santana Lopes. Ficou mais um ano no lugar.

Em Abril de 2007, José Sócrates e o ministro da Defesa Nuno Severiano Teixeira substituíram-no por Arnaldo Navarro Machado, um engenheiro naval que havia passado pela EDP, pela antiga Setenave e pela Central de Cervejas. Em Junho de 2008 foi eleito pelo accionista único Estado também para a presidência da Empordef.
Acompanhou toda a construção do Atlântida, mas saiu repentinamente dos ENCV em Dezembro de 2008 para ser presidente executivo da Iberwind, uma empresa do sector das energias renováveis, tendo renunciado no mês seguinte à presidência da Empordef.

Em Fevereiro de 2009, o novo presidente da Empordef António Jorge Rolo acumulou a presidência dos ENVC. Sobre o processo de construção do Atlântida, dizia este gestor em Abril: “É preciso saber que erros foram cometidos para que, com a lição aprendida, se evitem situações futuras”.
Não houve futuro. A decisão de rescindir o contrato de construção do navio com os estaleiros foi tomada pelo governo socialista açoriano presidido por Carlos César, nesse mês de Abril, sendo então secretário regional da Economia Vasco Cordeiro, actual presidente do governo dessa região autónoma. No governo da República era primeiro-ministro o socialista José Sócrates.
Em Maio, Rolo chegou a acordo com a Atlânticoline para a rescisão do contrato. Os ENVC ficaram com os dois navios, devolvendo as verbas de 32 milhões de euros pagas pelos Açores, acrescidos das indemnizações pelo atraso na entrega da embarcação previstas no contrato. Um total de 40 milhões de euros que obrigou os ENVC a pedirem um empréstimo pelo qual pagam 2,1 milhões de euros de juros anuais.
No entanto, o ano de 2009 foi óptimo para os gestores da Empordef: duplicaram os lugares no conselho de administração.

Em Agosto de 2011, o actual ministro da Defesa Aguiar Branco nomeia o engenheiro Jorge Camões para a presidência dos ENVC.
Do acordo de rescisão falta liquidar 7 milhões há mais de dois anos. A Atlânticoline contabilizou 1,4 milhões de juros e requereu judicialmente a execução da penhora do navio Atlântida, em Agosto de 2013, reclamando a cobrança de créditos no montante de 8,4 milhões de euros sobre os ENVC.

Já esteve avaliado em mais de 40 milhões de euros, agora valerá metade no mercado. Esta semana é colocado à venda em concurso internacional sem valor-base de licitação. Será vendido pela melhor proposta financeira. Pode ser 1 euro.

O Atlântida vai partir. Os Estaleiros Navais de Viana do Castelo vão encerrar. Políticos de um lado, sindicalistas do outro lado e, no meio, os trabalhadores. Entalados.





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