sábado, 14 de março de 2020

Um apelo dramático


Acabei de ler o artigo de opinião mais dramático até agora publicado sobre a COVID-19 em português. Foi escrito por um profissional de saúde profundamente conhecedor do que se está a passar nos hospitais italianos e da grave crise de recursos materiais e humanos por que passam os hospitais portugueses.
Como este blogue é sobretudo lido por descendentes de portugueses que enveredaram pela diáspora e, por isso, necessitam da tradução rápida acessível no canto superior direito, tomei a liberdade de copiar integralmente o texto, com as devidas vénias a quem teve a hombridade de escrever e ao jornal Público que foi capaz de publicar:


Estamos em guerra, senhor primeiro-ministro, por isso temos de usar tudo para defender o nosso país, que está à mercê dum inimigo sem igual. O maior que alguma vez tivemos de enfrentar nas nossas vidas.

Fausto J. Pinto
14 de Março de 2020, 20:58

Vivemos tempos únicos, em que subitamente, aquilo que era adquirido como conquistado, ou seja, a contenção das grandes pandemias que assolaram o mundo, há um século, foi deitado por terra com a crise resultante da pandemia pelo coronavírus covid-19. Numa fase inicial o mundo encarou o problema como sendo um problema chinês, mas rapidamente se percebeu que, mais tarde ou mais cedo, iríamos ter uma disseminação global. E finalmente temos a pandemia, declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), na passada quarta-feira. E o que era aparentemente um problema sobretudo chinês passou a ser um problema do mundo.

O director-geral da OMS pediu, muito claramente, aos países para fazerem tudo para conter esta tragédia. Mas, embora seja uma pandemia, não chega ao mesmo tempo a todos e isso cria uma janela de oportunidade gigantesca para os países que ainda não tiveram o embate maior. É aqui que Portugal ainda pode minimizar a dimensão do inevitável. Mas o tempo escasseia.

Hoje já temos 169 casos confirmados, com 12 doentes em cuidados intensivos. Estes casos foram resultado de contactos nas últimas duas semanas, o que significa que os números vão começar a crescer de forma muito significativa nos próximos dias, prevendo-se um pico daqui a cerca de duas a três semanas.

Este é pois o momento de actuar com toda a força. Como se fosse o Dia D, em que temos de jogar tudo para minimizar a força do inimigo. Infelizmente as armas que temos para este inimigo são muito escassas ou nenhumas, pois ainda não há nem tratamento específico, nem vacina. Na passada quinta-feira, V. Exa. anunciou medidas que vão ao encontro daquilo que muitos de nós propúnhamos, nomeadamente encerramento de escolas e outros estabelecimentos, bem como algumas medidas restritivas que anunciou. Mas, senhor primeiro-ministro, a dimensão do problema que enfrentamos exige muito mais.

Podia fazer uma longa narrativa justificando o que lhe vou pedir, mas transcrevo resumidamente as palavras dum médico italiano com grande responsabilidade e que está agora a viver a catástrofe em Itália: “Retiraram-se os ventiladores das salas de operações para montar novas áreas de cuidados intensivos. Usa-se todo o tipo de máquina que permita ventilar. Compraram-se novos ventiladores. Mas não chega. Deixámos de ventilar os doentes com mais comorbilidades e os idosos. É uma morte difícil. Em solidão. Sem ventilação. Com morfina e midazolam. O desmame dos que sobrevivem é demorado.

Contam com quatro semanas de ocupação da Unidade de Cuidados Intensivos. A mortalidade é difícil de definir por causa dos que não chegam a ventilação invasiva. Estão a criar hospitais sujos e hospitais limpos. Pioram os cuidados aos não covid. Burnout entre os profissionais. Necessidade de apoio psicológico diário. Nenhum profissional se aproxima menos de um metro de outro. Têm teams próprios para intubação. Procuram intubar por fibroscopia. O essencial é os profissionais serem capazes de se despir de emoções. Diz que só tough guys aguentam a linha da frente.

Tem muitos anestesistas envolvidos. Este colega avisa para a necessidade de nos prepararmos psicologicamente. De não contar com as autoridades, mas sim com a nossa capacidade de inventar soluções. Deseja-nos muita coragem e muita força. Diz que as nossas vidas nunca serão iguais depois disto. Não sabe a que distância estão do pico, mas assinala que só as medidas de precaução na sociedade podem ajudar. E tem que ser a sério. Mais as medidas drásticas no hospital.

E este é o momento para Portugal tomar medidas ainda mais firmes, que nos defendam e minimizem a destruição que o inimigo, que já está entre nós, vai provocar.

Senhor primeiro-ministro, este é o momento de mostrar coragem e fazer o que tem de fazer que é decretar quarentena obrigatória, estado de emergência, porque é de uma emergência que estamos a falar. Fechar fronteiras, bares, cafés, restaurantes, casas de espectáculo, praias, tudo, excepto naturalmente os serviços essenciais, como os serviços de saúde. E estes terão de receber um reforço financeiro tão grande quanto o possa fazer. Estamos em guerra, senhor primeiro-ministro, por isso temos de usar tudo para defender o nosso país, que está à mercê dum inimigo sem igual. O maior que alguma vez tivemos de enfrentar nas nossas vidas.

Faça-o agora, quando ainda há uma pequena janela, do que daqui a uns dias quando já não tiver alternativa, mas for tarde de mais. Se agir agora, Portugal vai-lhe ficar grato para sempre, se agir tarde demais nunca lhe perdoará. E não pode dizer que não foi avisado.

Senhor primeiro-ministro, não perca mais tempo, pela sua e pela nossa saúde.


Cardiologista, Director da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e Presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP); director do Serviço de Cardiologia e Departamento Coração e Vasos do Centro Hospitalar Lisboa Norte.


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Alguns comentários ao artigo mostram que muitas pessoas já se aperceberam da situação caótica e de penúria em que se encontra o Sistema Nacional de Saúde português (o negrito é meu):

Ricardo Santos.888436 Iniciante
Ate que enfim, passado um mês temos um artigo de opinião com bom senso. Fechem tudo já.

Joao Iniciante
Absolutamente de acordo. Só discordo com "é este o momento" pois em meu entender já deveria ter sido há semanas, mas é melhor tarde que nunca.

Jcampos.876517 Iniciante
Fechar, informar, explicar. Temos uma população pouco escolarizada. Isso também se paga.

mzeabranches Iniciante
Esperemos que este apelo seja ouvido pelos responsáveis políticos e pela população em geral!

jacekm.885207 Iniciante
Eu sou polaco, moro em Portugal. Meu país fechou as fronteiras, discotecas e bares. Você tem que fazer o mesmo.

Boris Vian Influente
Pois foi. Essa leviandade irresponsável de pensar 'inicialmente como sendo um problema chinês... e agora, é como está no sub-título "Estamos em guerra". Uma guerra Invisível!

newsbypublic.882951 Iniciante
Muito obrigado, Sr. Prof. Fausto Pinto, pelo seu testemunho e lucidez. É incompreensível que, neste momento sem paralelo, os factores económicos estejam num patamar superior em relação ao direito e ao valor da Vida. Da Vida de cada um de Nós. As medidas têm sido tomadas, de forma tardia e hesitante, como por exemplo, o "controle pontual" de fronteiras. Ou há um controle eficaz ou esta atitude de "controle pontual" é meramente demagógica. Bares a encerrar às 21 horas? E a que hora é que podem abrir? Quantas pessoas/dia e em que condições irão frequentar os bares, etc? António Costa não aprendeu com a tragédia de Pedrogão Grande. Não há destino. Houve negligência criminosa que ficou impune. Nos Hospitais quando tiverem que decidir quem irá ter acesso a um ventilador será dramático. M. C

newsbypublic.882951 Iniciante
António Costa, Mário Centeno e outros membros do governo são moralmente responsáveis pelo desinvestimento crescente no SNS. Em notícias publicadas em outros media, é revelada a escassez de ventiladores no SNS, independentemente da situação actual e premente da covid-19. Já faltavam ventiladores, logo os cuidados de saúde há muito que estavam comprometidos. É importante realçar este facto. No cenário excepcional causado pela covid-19 que irá atingir a sociedade portuguesa, de forma mais ou menos traumática, as decisões nos Hospitais, tendo em conta o relato de um médico italiano são tomadas, de acordo com a idade e as condições de saúde de cada um. À partida, os idosos, os doentes oncológicos ou com outras patologias crónicas são mais vulneráveis. Com o que é que vão poder contar? M. C

JJ Influente
É por este motivo que em países como Portugal não se pode actuar só com medidas de sensibilização. Por respeito até com os próprios profissionais de saúde que vão atravessar semanas ou meses no tratamento dos infectados o governo já deveria ter decretado estado de emergência nacional e fecho de fronteiras. Tristeza de país.

Norberto Iniciante
O meu maior medo é o da irracionalidade das pessoas, do pânico e do histerismo. A mente irracional é muito mais perigosa que o Coronavírus. Fecho de fronteiras, desconfiança do próximo, quebra brutal dos investimentos (sobretudo nos países emergentes) irão criar problemas muito maiores que as mortes causadas pelo Coronavírus. A emenda é pior que o soneto. Estamos em guerra com o pânico e com o histerismo. A quarentena impõe-se para pessoas com mais de 70 anos ou com outros problemas de saúde. Não para os demais. O risco de morrer em Portugal por Coronavírus mesmo que já houvessem 30.000 casos em Portugal é inferior à mortalidade esperada POR ANO de acidentes de viação (para alguém de 40-50 anos). Sugere então que se proíba andar de carro durante os próximos 50 anos? Proibir fumar e açúcar?

Nuno Araujo Iniciante
É por causa de pessoas como o Norberto que temos mesmo que declarar Estado de Emergência e obrigar as pessoas a ficarem em casa. São sempre mais espertas e mais inteligentes que os outros. Nada lhes acontece. E pouco lhes importa se estão a morrer muitas ou poucas pessoas, ou se os médicos estão já desesperados com o fluxo de doentes a chegarem ao hospital e isto ainda nem começou. Enfim...

ALRB Experiente
A probabilidade de este primeiro-ministro tomar uma medida corajosa é igual à probabilidade de uma galinha ter dentes. Este PM funciona unicamente em função da popularidade: se dá votos ele faz, nem que seja errado, se não dá votos ele não faz nem que fosse preciso que fizesse.
A única maneira de ele tomar a medida de fechar o país é ele poder dizer que a UE mandou fechar o País, ou não aparecer ninguém nos postos de trabalho (aí ele percebia que a medida seria popular). Uma última hipótese era conseguir culpar o Passos Coelho, mas essa desculpa já está muito gasta.


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