segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Procuram-se novos pais


O artigo de opinião, que a seguir transcrevemos com a devida vénia, foca um dos problemas mais graves da sociedade portuguesa contemporânea — a demissão da actual geração de pais da educação dos filhos.

O autor, um conhecido professor catedrático de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, há décadas que se debruça sobre este comportamento aberrante, que continua a agravar-se, e já tinha escrito, em 1994, o livro “Inventem-se novos pais“ sobre o tema. Que infelizmente não foi lido pelos pais portugueses que permanecem na senda da permissividade.


"Porque Sim
Filhos tiranos, pais mártires

Daniel Sampaio

Este é o título de parte da habitual crónica de João Garcia, publicada no Expresso de 4 de Outubro. Repito a qualificação, porque me parece muito oportuna.

João Garcia refere-se a um estudo da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, onde se revela que há cada vez mais filhos com menos de 25 anos que agridem os pais, surgindo um novo caso de três em três dias.

Não conheço a metodologia da investigação citada nem, sobretudo, o contexto familiar em causa. No entanto, a minha percepção clínica é a de que a situação ocorre com alguma frequência, o que torna essencial reflectir sobre este tema.

Garcia acrescenta: “Pelo que se assiste nas ruas, nos centros comerciais e nos restaurantes, estes números só podem piorar. E muito.”

É provável que tenha razão. Os pais dos jovens de hoje têm um claro défice de autoridade. Compreende-se porquê. Os seus pais (avós dos jovens actuais) foram a geração que se rebelou contra o poder instituído. Em Portugal, muitos desses homens e mulheres tentaram ser diferentes: as mulheres foram todas para o trabalho e os homens recusaram o autoritarismo de que tinham sido vítimas.

Os pais das crianças de hoje foram educados em famílias democráticas, em que a sua voz foi ouvida e respeitada. De uma época em que as crianças cedo eram mandadas para a cama e ninguém se esforçava para saber o que pensavam, caminhou-se para o oposto, em que o menino-rei desde muito cedo quer impor a sua lei. É frequente crianças acompanharem o serão dos pais, irem ao restaurante com a família para uma refeição tardia, ou passarem horas em centros comerciais, a disputarem presentes que depressa abandonarão. Nas inevitáveis zangas familiares, os pais são indulgentes e tudo aceitam, ou então tentam castigos que não conseguem fazer cumprir, porque o passado relacional entre aquele progenitor e o seu filho não criou a distância mínima necessária ao cumprimento de uma ordem.

Nos anos 1980 começou a moda da “negociação”, em que pais e filhos gastavam horas antes de ser tomada uma decisão sobre uma saída nocturna ou um fim-de-semana em casa de amigos. Se o diálogo e a escuta activa dos mais novos é uma das grandes conquistas do século XX, é bom saber que as questões de saúde e segurança dos mais novos não admitem negociação. Se o pai ou a mãe sabem que um adolescente vai para uma festa onde o álcool e as drogas circulam livremente, a decisão só pode ser uma: o adolescente não pode ir, seja qual for o seu protesto e ameaça.

Na maior parte dos casos, os filhos que agridem os pais pertencem a duas categorias: ou têm perturbações mentais e devem ser encaminhados para uma consulta de Psiquiatria; ou ganharam demasiado poder na família e querem, a todo o custo, impor a sua lei. Neste último caso, houve um momento crítico no passado familiar: aquele em que o filho “cresceu” para o pai e este fez de conta que nada se estava a passar. Nesse instante decisivo, os pais em causa devem fazer cessar imediatamente esse comportamento da criança ou do adolescente, de outra forma haverá repetição e o ciclo de violência nunca mais parará, sendo particularmente grave nos adolescentes mais velhos, que ameaçam com o seu maior poder físico.

A única solução passa pela esfera relacional, em que pais e filhos constroem uma relação de respeito mútuo, mas onde a palavra final terá de pertencer sempre aos progenitores."


*

Foi a descontinuidade provocada pelo 25 de Abril — a interrupção das aulas no ano lectivo 1973/74, a ausência de aulas em 1974/75 e 1975/76, as passagens administrativas de ano, com ocupação das escolas pelos alunos — e a canalização de milhares de milhões de euros para a sociedade portuguesa em pouco mais de duas décadas, ou seja, ao longo do tempo de crescimento de uma geração de jovens que viu todos os desejos a poderem ser satisfeitos pelos pais, que criou o problema da educação na sociedade portuguesa.

E que ninguém duvide, a palmada pedagógica dada no traseiro, e apenas no traseiro para não provocar qualquer dano anatómico, é indispensável.
Cito o caso de um miúdo de 12 anos que estava com o joelho em cima do banco do laboratório de Física, enquanto os outros alunos estavam sentados, e que recusou cumprir as minhas instruções durante as três passagens que fiz pelas mesas. À quarta passagem pelo seu lugar apanhou uma palmada no traseiro, olhou surpreendido para mim e sentou-se imediatamente. Passou a cumprir as minhas ordens e o nosso relacionamento não foi afectado. Semanas mais tarde consertou de livre vontade um dinamómetro que estava avariado e recebeu um caloroso elogio meu perante a turma.
Quando cheguei à sala de sala de professores, contei o episódio. Uma colega, professora de Português e directora da Biblioteca da escola, que se gabava de ter entrado pela primeira vez numa biblioteca no 10º ano de escolaridade e que tinha idade para ser minha filha, avisou-me que me arriscava a receber uma acusação de pedofilia. Respondi-lhe que nunca ninguém se tornou pedófilo aos 61 anos e virei-lhe as costas, até porque era uma lambe-botas da directora do agrupamento e esse tipo de comportamento mete-me nojo.

O artigo do professor Daniel Sampaio gerou um fórum de opiniões onde estão os argumentos que habitualmente aparecem numa discussão deste grave problema:


Miguel Martel Lima
12/10/2014 00:22
Bom artigo, mas que omite o essencial: os filhos são tiranos e cada vez mais, graças ao "democrático" espírito do 25 de Abril, ou seja a bandalheira, manda aquele que tem mais força e a Justiça, o Respeito pelos Outros, ..., não interessam.
Afinal, os políticos são os primeiros a dar um mau exemplo: o estado em que Portugal está é a prova da incompetência deles, ou a corrupção e impunidade não fossem as grandes características!

Rui Matias
13/10/2014 00:34
Caros Senhores, Com o devido respeito que tenho pelas V/ opiniões, permitam-me dizer que o comportamento actual das crianças e jovens em nada tem a ver com o 25 de Abril ou a corrupção latente no sistema político actual português.
A verdade é que estamos perante uma geração mal-educada cujos valores e princípios de respeito foram desvirtuados ou mal transmitidos. Por isso, os verdadeiros culpados da actual situação não são mais do que os pais dos actuais jovens e adolescentes que não souberam/entenderam que têm a obrigação de educar e não mimar. Tenho dito.

Harukiri
13/10/2014 11:20
Esta questão tem nada a ver com o 25 de Abril mas sim com o laxismo instaurado na nossa (e em outras) sociedade.
Sou pai e nunca deixarei um filho meu chegar a estes extremos. A educação deve ser algo transmitido pelo progenitores sempre. A questão que se coloca é: E quando os próprios progenitores não têm educação ou quando falham em passá-la?
A sociedade, como um todo, anda a dormir à sombra da bananeira e a deixar todos os problemas para outro resolver. Neste caso concreto, tem que se dar novamente poder às escolas para agir e punir o mais simples acto de desrespeito por um professor ou até por um funcionário da escola, isto é algo que é fundamental. Não se pode continuar a criminalizar as chapadas nos meninos, senão o comboio continuará a descarrilar.
  • Nuno Carvalho
    13/10/2014 12:10
    Concordo com o que disse, uma chapada de vez em quando faz milagres, infelizmente hoje um pai que dê uma simples chapada a um filho, sujeita-se logo a ter a segurança social à porta, o que poderá ser um exagero.
    É preciso fazer a distinção entre uma chapada/palmada correctiva/educativa e o espancar uma criança, para que não se confundam.
  • Harukiri
    13/10/2014 13:09
    Nem mais, caro Nuno, é precisamente disso que falo. Contudo acho que esse tipo de ação disciplinar também tem que ser permitido a terceiros, nomeadamente a professores que bem vistas as coisas, passam a maior parte do tempo com as nossas crianças!
  • Gota
    A Gota que é Gutta... 13/10/2014 15:07
    Estou cem por cento de acordo, caros Harukiri e Nuno Carvalho. É preciso pôr termo a esta permissividade absurda que mais tarde resulta obrigatoriamente em libertinagem. Aquilo que se passa nas escolas actualmente é uma aberração. Como diz o caro Nuno, uma bofetada oportuna evitará muitos dissabores futuros!

luamar
13/10/2014 15:15
Infelizmente é mais fácil usar a força para 'educar', ou melhor, adestrar é a palavra correta, ao invés do cérebro. Pais que batem não educam, mas adestram os filhos. Pais que dialogam educam. A linha que separa umas bofetadas de um espancamento é ténue, a tendência é sempre usar mais força. Conversem e deem um castigo sem usar a violência.
  • Gota
    A Gota que é Gutta... 13/10/2014 15:40
    Desculpe, mas dar uma palmada merecida no momento oportuno não é violência e se a coisa se repetir (e repare que digo se) não tem que ser mais forte.
    Todos os pais que se preocupam com a verdadeira educação dos filhos sabem que há alturas em que as palavras são insuficientes e uma palmada oportuna pode ser a diferença entre uma tomada de consciência e uma aprendizagem, ou um futuro desregrado e socialmente prejudicial!
  • tripeiro
    13/10/2014 16:12
    Eu diria que umas boas palmadas são necessárias a uma educação completa. Eu levei algumas e não morri nem fiquei traumatizado e estou certo que o facto contribuiu para algo que agora é muito difícil ver: respeito pelos adultos.
  • Harukiri
    13/10/2014 16:20
    A questão, caro luamar, é que muito poucas crianças vão ao sítio apenas com palavras e castigos brandos (tais como retirar coisas que gostam), para muitas esse tipo de castigo só piora a revolta interna que sentem em relação aos pais.
    Uma palmada não é violência, apanhei várias ao longo do meu crescimento, todas merecidas e cada uma com a sua lição.
    Agora tem que haver é a outra parte. Da mesma maneira que tem que se castigar o errado, também tem que se recompensar o certo. Só assim se cria uma pessoa com carácter capaz de perceber a diferença entre o certo e o errado.

Maria Do Rosário Palma
Excelente Artigo. É uma realidade constante esta que Dr. Daniel Sampaio relata. Vivemos na era em que a maior parte dos filhos é que manda nos pais.
Observei uma situação em que uma criança, com cerca de 5 anos, num lugar público pontapeava uma cadeira. A mãe limitava-se a dizer "Martim não faça isso" e o miúdo continuava e ainda dizia "Faço porque quero". A mãe, impávida e serena, estava mais preocupada em devorar a sua literatura 'cor de rosa' do que mandar o filho parar com aquela falta de respeito. Um senhor chegou ao pé do miúdo e disse-lhe: "Ouve lá, a cadeira fez-te algum mal?" A mãe muito ofendida perguntou: "Por que está a chamar o meu filho à atenção? A mãe sou eu e eu é que mando nele", ao que o senhor respondeu, e muito bem, "Manda? Olhe que não me parece, acho que manda mais ele na senhora, do que a senhora nele".

Ricardo Cardoso
Entre outras coisas, o fenómeno social denunciado no artigo de Daniel Sampaio (assim como na crónica original que lhe serviu de mote) comprova, de forma insofismável, os efeitos deletérios da excessiva democratização de determinados tipos de relações.
Entre pais e filhos, professores e alunos, patrões e empregados (apenas para citar alguns exemplos), embora assente numa lógica de respeito mútuo, tem de ser preservada uma hierarquia, sob pena de se resvalar para a anarquia. A qual, de resto, parece afigurar-se assaz apelativa para alguns defensores mais fundamentalistas dos direitos das crianças e dos jovens. Esquecendo-se, muito convenientemente, de enfatizar que só tem legitimidade para reivindicar direitos quem cumpre os seus deveres.

De tão permissiva e condescendente, esta sociedade onde prevalece uma torpe inversão (ou um aterrador vazio) de valores e em que os progenitores se demitem sistematicamente das suas funções de educadores, produz em série pequenos tiranos que, respaldados na sua inimputabilidade, adotam todo o tipo de comportamentos disfuncionais e antissociais à medida que se vão acercando da idade adulta. Incluindo-se nesse lote de condutas reprováveis as agressões aos próprios genitores.

É, pois, um erro crasso pais e filhos colocarem-se em idêntico patamar, na medida em que isso cerceia a autoridade dos primeiros. Essa é também, por outro lado, a contrapartida que muitos progenitores estão dispostos a conceder a troco do afeto da respetiva prole, cada vez mais tirânica e egoísta. Como se afeto e autoridade parentais fossem conceitos antagónicos e, portanto, absolutamente inconciliáveis.

Termino este meu singelo comentário com um pedido de desculpas antecipado às mentes mais liberais que o mesmo venha, porventura, a melindrar. Para mais tendo em conta o facto de que não possuo qualquer formação nas áreas de Psicologia, Sociologia, Pedopsiquiatria e quejandos. A minha modesta análise resulta, portanto, apenas e só da mera observação empírica, nos mais diversificados contextos, das condutas intoleráveis de muitos petizes malcriados (ainda que camuflados por conceitos decorrentes de uma certa nomenclatura politicamente correta).
Os mesmos que, não reconhecendo sequer a autoridade parental, se insurgem violentamente na sala de aula, agredindo verbal e fisicamente professores, funcionários e colegas. E que amanhã poderão muito bem vir a agredir os seus cônjuges e a sua descendência. Que me perdoem, pois, os especialistas (encartados ou amadores) nessas ciências a minha ousadia por este desabafo de alma.


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