quinta-feira, 9 de abril de 2020

COVID-19: Carta aberta de cientistas e médicos à DGS


Um grupo de entidades com experiência na área de Ciência dos Dados e da Saúde enviou uma carta aberta à Direcção Geral de Saúde (DGS) em que expõe as falhas na disponibilização de dados por parte da DGS e oferecem ajuda técnica e estratégica, apelando a uma maior colaboração com a sociedade civil no desenho de uma estratégia melhor.

A carta foi desenvolvida pela Associação Portuguesa de Ciência de Dados para o Bem Social (DSSG PT) e assinada, até ao momento, pela ANMSP, Cintesis, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e Movimento tech4COVID19.
No entanto, peço a todos os portugueses que se preocupam com o seu país e com o futuro dos seus filhos que reservem alguns minutos para ler e reflectir sobre os problemas relatados nesta carta:

****Poucos dias depois da eclosão do surto de COVID-19 em Portugal, e face à multitude de esforços por parte de uma comunidade de voluntários digitais que rapidamente surgiu, a equipa da Associação Portuguesa de Ciência de Dados para o Bem Social (DSSG PT) decidiu também actuar no âmbito da sua experiência na área dos dados abertos.
****O exemplo de outros países mostra a importância da transparência das Autoridades de Saúde relativamente à evolução da epidemia e à sua actuação sobre a mesma, através da publicação frequente de dados detalhados e de fácil processamento. A publicação atempada e facilmente consumível destes dados tem várias vantagens:


  • Informar a população através de fontes oficiais, controlando eventuais fenómenos especulativos e garantindo uma base de conhecimento comum a toda a sociedade.

  • Garantir que todos os decisores e meios de resposta nesta crise (que, em última análise, são todos os membros da sociedade civil) estão a par das capacidades e fragilidades do sistema de saúde, em tempo real, de modo a adequar as respectivas respostas. Por pior retrato que, em determinados casos, isso possa revelar desses mesmos Sistemas de Saúde.

  • Alimentar uma comunidade científica/industrial/informal ávida de contribuir com análises ou ferramentas que possam, de algum modo, apoiar as intervenções de Saúde Pública — numa altura em que os Serviços de Saúde Pública se encontram sob imensa pressão.

****Os exemplos de excelência das aplicações práticas deste tipo de políticas são o repositório de dados da Protecção Civil Italiana ou o dashboard da epidemia em Singapura.
****Na tentativa de colmatar a inexistência de uma estratégia de dados abertos por parte da Direcção-Geral da Saúde (DGS) do Ministério da Saúde Português, a DSSG PT propôs-se a disponibilizar em formatos facilmente processáveis e nativos da comunidade analítica (ficheiros estruturados CSV/Excel/JSON), da forma mais atempada possível, todos os dados que a DGS vai disponibilizando.
****Surgiu, assim, o repositório de dados covid19-pt-data, um espaço centralizador de dados oficiais em formatos de fácil processamento, e que rapidamente acumulou milhares de visualizações e variados utilizadores, tanto institucionais como individuais.
****Embora o trabalho de divulgação e disponibilização de dados por parte da DGS tenha melhorado ao longo da epidemia, ainda assim se verificaram muitos atrasos, retrocessos, inconsistências e más práticas de partilha de dados. Indubitavelmente algumas dever-se-ão a erros humanos — totalmente compreensíveis — por parte de quadros clínicos sob grande pressão e elevadas cargas de trabalho. Outras, no entanto, são mais fundamentais: tratam-se de sintomas claros da ausência de um verdadeiro Sistema de Informação para a Saúde Pública e de uma cultura sistemática e enraizada de dados.
****Evidenciamos abaixo algumas delas, com base na experiência diária de actualização destes dados desde o dia 15 de Março de 2020:


  • Disponibilização dos boletins diários num formato não-estruturado (PDF), cuja extracção de dados não é trivial.
  • Constantes mudanças no formato do boletim em termos de aspecto e estrutura, o que dificulta abordagens mais avançadas para extracção automática de dados.
  • Constantes mudanças nos indicadores clínicos disponibilizados (adição de indicadores, remoção de indicadores, alteração das grandezas utilizadas), o que causa incertezas no planeamento de potenciais análises e projectos científicos.
  • A existência de dados processados dentro dos boletins em formatos completamente imperscrutáveis: gráficos (ao invés dos dados absolutos que lhes deram origem) com eixos demasiados esparsos e legibilidade reduzida. Para todos os efeitos, estes dados estavam bloqueados, impossibilitando qualquer outra análise que não a aí apresentada.
  • O grande diferencial entre a data de publicação dos dados e a data a que dizem respeito (12h), numa situação em constante evolução e que exige respostas rápidas e informadas.
  • Ausência de um dicionário de dados, de um glossário científico e de notas metodológicas acerca da recolha dos dados reportados, o que leva a muitos exercícios especulativos nas redes sociais/meios de comunicação social após o lançamento dos boletins. Exercícios estes que meramente se acumulam sobre a pilha de desinformação já circulante.
  • Inconsistências pontuais entre valores totais e a respectiva divisão em subgrupos, denotando a inexistência de mecanismos automáticos de verificação de qualidade dos dados e comprometendo a confiança e a transparência institucionais.
  • Paragem na actualização dos dados relativos à linha SNS24 a partir de 9 de Março, no portal Transparência — SNS, numa altura em que foram levantadas muitas questões acerca da sua capacidade e eficácia.
  • Paragem, na plataforma de Vigilância de Mortalidade da DGS, da actualização dos dados sobre mortalidade por Administração Regional de Saúde a partir de 19 de Fevereiro, assim como da ferramenta de previsão de mortalidade, sendo apenas comunicada a mortalidade total e por distrito.
  • Falta de conhecimento acerca do número de testes disponíveis e efectuados, assim como a respectiva tipologia, metodologia de aplicação e o modo como esta se reflecte nos restantes indicadores clínicos.
  • Inexistência de informação, global ou estratificada, acerca de equipamento e infraestrutura disponíveis, como por exemplo o número de quartos individuais de isolamento, de camas em unidades de cuidados intensivos ou de ventiladores.
  • Inexistência de um sistema de informação integrado no SNS que permita a criação automática de um relatório com base nas contagens dos infectados por região.

****A crítica é, claro, construtiva, e deve ser sempre acompanhada dos elogios que lhe são merecidos. Nesse sentido:

  • Não obstante problemas de legibilidade e clareza de linguagem, a ideia do boletim diário é boa. O boletim é um recurso visualmente forte, conciso e de entendimento fácil pela população em geral. O boletim deve ser meramente uma ferramenta numa panóplia mais alargada de estratégias de comunicação de dados — nunca, de modo algum, a única.
  • A adequada frequência de actualização dos dados. Embora os dados pecassem por terem um atraso considerável, publicá-los a um ritmo diário é uma boa escolha. Publicações mais frequentes só alimentariam a obsessão monotemática dos órgãos de comunicação social e, por conseguinte, da sociedade civil; publicações menos frequentes dariam demasiado azo a rumores e especulação.
  • A resposta ao feedback dado pela sociedade no que diz respeito a alguns dos problemas detectados na estratégia de dados da DGS foi um ponto positivo. Neste ponto, merece especial atenção a disponibilização de dados que foi anunciada após uma petição pública subscrita por várias entidades de investigação científica. Ficou comprovado que existe uma abertura à crítica construtiva e a colaborações com membros da sociedade civil, o que é um ponto positivo de extrema importância. Contudo, até à data, não se materializou.

****E é precisamente neste último ponto que nos queremos focar com esta exposição. Mais do que uma lista infértil de prós e contras, pretendemos colocar à disposição do Governo da República Portuguesa, de forma totalmente voluntária, o conhecimento acumulado no seio das nossas organizações em relação a estratégias efectivas de partilha de dados abertos. Disponibilizamo-nos não só para fins de consultoria estratégica como também para discussões de natureza técnica e, sempre que as nossas capacidades forem insuficientes, para articulação com os agentes adequados na vasta e talentosa comunidade de Ciência dos Dados em Portugal. Comprometemo-nos a providenciar esta ajuda em tempo útil, tanto que a capacidade de resposta a esta epidemia seja reforçada com dois poderosíssimos recursos, agora mais relevantes do que nunca: a transparência e a colaboração.

Os signatários:

Associação Portuguesa de Ciência de Dados para o Bem Social
Website: https://www.dssg.pt/
Contacto: hello@dssg.pt

Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública
Website: www.anmsp.pt
Contacto: presidente@anmsp.pt

Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde
Website: http://cintesis.eu/en/home/
Contacto: cintesis@cintesis.eu

Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
Website: https://sigarra.up.pt/fmup/
Contacto: fmup@med.up.pt

Movimento tech4COVID19
Website: www.tech4covid19.org
Contacto: info@tech4covid19.org


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