Grande alarido está a provocar na comunicação social o caso das contribuições para a Segurança Social de cerca de 100.000 trabalhadores independentes que não cumpriram os seus deveres contributivos, e não foram notificados desse facto por aquela instituição, porque aparece envolvido o nome do primeiro-ministro actualmente em funções.
Dívidas contraídas há mais de uma década — 2000 a 2004, no que diz respeito a Passos Coelho — que prescrevem ao fim de cinco anos e, por isso, as anteriores a 2002 até já tinham sido apagadas do sistema informático, em 2006, durante o primeiro governo de José Sócrates.
Um caso bem aproveitado por muitos politicantes para atirar pedras ao actual primeiro-ministro sem olharem para os respectivos telhados de vidro. Felizmente ainda vão surgindo alguns artigos de opinião que procuram analisar o assunto com imparcialidade, zurzindo aquilo que consideram censurável, como este que a seguir transcrevemos com a devida vénia:
"Uma campanha suja
João Miguel Tavares 10/03/2015 - 06:54
Acredito profundamente que quem está na vida pública tem obrigações de transparência e de probidade muito superiores ao comum dos mortais.
Eu tenho leitores devotos que me cobram o silêncio: “Então agora que Pedro Passos Coelho anda a ser investigado você está caladinho, não é?”; “Sobre José Sócrates fartava-se de falar, mas sobre o actual primeiro-ministro nem uma palavra, não é?”; “Escrever textos sobre Zeinal Bava está muito bem — e sobre Passos Coelho?”. Certos leitores ainda me conhecem bastante mal e têm fraca memória: aconselho-os a recuarem seis meses e a lerem o que escrevi sobre Pedro Passos Coelho e o caso Tecnoforma.
Mas atenção, fogosos leitores: tal não significa que mal um novo escândalo espreite na comunicação social deva ir tudo a eito, e que aquilo que é diferente passe a ser tratado como igual, mandando às malvas os critérios na avaliação de cada caso. O caso Tecnoforma é mais grave do que o caso da Segurança Social. O caso PT é mais grave do que o caso Tecnoforma. O caso BES é mais grave do que o caso PT. E o caso Sócrates, a provar-se, é o mais grave deles todos. Dito isto, é verdade que muito boa gente precisa de fazer um esforço para abandonar os dois pesos e as duas medidas, Presidente da República incluído: reduzir a falta de pagamento continuado à Segurança Social por parte de um primeiro-ministro a “um certo cheiro de campanha pré-eleitoral” é um comentário de uma infelicidade confrangedora.
No meu caso, e no que diz respeito às exigências reputacionais dos políticos portugueses, o padrão não muda consoante a cor partidária — acredito profundamente que quem está na vida pública tem obrigações de transparência e de probidade muito superiores ao comum dos mortais. Nesse sentido, é óbvio que a mais recente trapalhada de Passos Coelho não bate certo com a imagem de um político que sempre manteve um discurso moralista a propósito da crise, e que nunca se cansou de acentuar a necessidade de todos cumprirem as obrigações contributivas que têm para com o país. O seu discurso, sublinhe-se, está certíssimo — e é por estar tão certo que ele não pode vir depois sabotar com as suas acções a solidez da pregação.
Mais: da direita à esquerda, continua a haver por aí uma lamentável confusão acerca do que deveria ser o escrutínio da actividade pública de um primeiro-ministro. Há mesmo quem se apresse a falar, a propósito deste caso, em “campanha suja” e em lamentar por antecipação aquilo que para aí vem. Mas é preciso não entressachar conceitos. Já houve algumas campanhas sujas em Portugal, uma das quais tendo como alvo o próprio José Sócrates — basta relembrar, em 2005, as insinuações de homossexualidade, a propósito de uma alegada relação com Diogo Infante. Campanha suja é isso.
Exigir transparência a propósito dos deveres fiscais de um primeiro-ministro ou analisar se os seus rendimentos são compatíveis com o seu nível de vida é uma outra coisa, bem diferente — é um dever dos cidadãos e da comunicação social, que demasiadas vezes, para minha grande tristeza, se esquece de fazer esse trabalho com o devido empenho. Ora, quem gosta de confundir as duas coisas nunca o faz com boas intenções. Porque se investigar, perguntar, chatear, escrutinar é uma “campanha suja”; se conhecer ao mínimo detalhe a forma como um candidato a primeiro-ministro cumpriu as suas obrigações para com o Estado que pretende dirigir é uma “campanha suja”; se exigir hombridade a um político profissional e uma conduta impoluta na sua vida pública é uma “campanha suja”; então dêem-me mais “campanhas sujas”, se faz favor. Elas são tudo aquilo de que Portugal precisa."
*
Entre os comentários do fórum desencadeado pelo artigo, há opiniões diferentes mas merecedoras de uma leitura atenta:
OldVic
08:46
Há nesta coluna muito que faz sentido e com o qual eu estou de acordo, mas tenho que me separar do autor quando considera que um político tem que ser medido com critérios diferentes do cidadão comum.
Um dos pilares do Estado de direito é a estrita igualdade perante a lei de todos os cidadãos. Tratar um político com mais rigor do que a lei exige é um ataque a esse estado de direito, da mesma maneira que, tratar um político com menos rigor do que a lei exige, o seria.
Não podemos, por um lado, combater o sistema “2 pesos, 2 medidas” e, por outro, usá-lo apenas para uma classe social, por muito popular que seja atirar pedras a essa classe social. Além disso, neste caso, Passos Coelho estava na companhia de mais de cem mil outros cidadãos. Seria interessante fazer um pequeno estudo estatístico para saber qual a percentagem dos portugueses que já esteve em incumprimento fiscal. Muito interessante.
- luamar
13:24
Old Vic, por muito que lhe custe um político não é um cidadão como outro qualquer pois lida com a causa pública, nomeadamente com o dinheiro de todos os contribuintes. Durante a sua passagem pela vida pública um cidadão deve saber que vai ser escrutinado duma forma mais rigorosa. Se não pretende submeter-se a esse escrutínio, não entra na vida pública.
- OldVic
14:27
Luamar, leve a sua teoria de que há cidadãos diferentes perante a lei a um tribunal e vai ver o que lhe dizem, por muito que lhe custe…
- luamar
14:40
Há mais maneiras de penalizar, para além das legais. Aquilo que PPC fez — faltar aos pagamentos da SS quando o exige para os restantes cidadãos — será devidamente julgado pelos eleitores quando forem votar. Não confunda o direito com a justiça.
- OldVic
15:27
Quanto ao seu último comentário, garanto-lhe que estou 95% de acordo, mas devo assinalar que, à data, Passos tem a sua situação regularizada e que estava na companhia de, pelo menos, 100.000 portugueses quando estava atrasado.
- luamar
16:32
Os 100.000 portugueses que, à data, estavam atrasados não são o primeiro-ministro de Portugal! É que ser primeiro-ministro de um País pressupõe ter moral para exigir aos compatriotas o cumprimento dos deveres contributivos. O "desculpem lá qualquer coisinha" podia servir de desculpa aos 100.000 atrasados mas não ao primeiro-ministro.
- OldVic
17:13
Estou um pouco confuso: agora fala de moralidade ou de legalidade? Está sempre a saltar entre as duas... E tenho que lhe repetir: Passos já pagou o que tinha a pagar. Faz parte dos que acham que não há perdão para quem erra, ou depende da cara do “cliente”?
- luamar
17:47
Aqui não se trata de “clientes”. Do ponto de vista legal, PPC até pode já ter a situação fiscal regularizada.
Mas há erros e erros... E um primeiro-ministro não pagar à SS, mesmo em Portugal, irá ter consequências eleitorais, por muito que você “se arranhe todo” para o desculpar.
Joao
09:31
No geral, concordo com o JMT. Venham então mais "campanhas sujas", da direita à esquerda, desde que seja para endireitar o país. Acho que é esse o espírito que deve unir os portugueses de bem.
Miguel S.
Trondheim 09:58
Os titulares de "altos cargos" (não só públicos) têm um dever adicional que vem com "a posição": o dever do exemplo. Independentemente das linhas políticas, de gestão ou económicas que adoptam e seguem, deveriam ser pessoas acima de qualquer suspeita fundamentada. Porquê? Porque são eles quem tem o poder de influenciar e de causar uma diferença na vida de milhões de pessoas.
Claro que os políticos não nascem por geração espontânea, são pessoas e, como qualquer pessoa, têm a personalidade moldada em grande medida pelo meio onde crescem. Em Portugal, a sociedade continua a privilegiar o chico-espertismo e a satisfação de interesses de curto prazo e de natureza pessoal.
Com o sistema actual, uma pessoa de real valor para o país — a minoria — não faz carreira política, não se mistura com a mediocridade reinante no sistema. Tem nojo dele.
O que sobra são as escolhas que aparecem no boletim de voto, os verdadeiros espelhos da maioria, secundados por narrativas e crónicas mais ou menos elaboradas e/ou omissas relativamente a factos, ao sabor de preferências pessoais. Quando o exemplo é este, avizinham-se muitas e sucessivas troikas, pois o exemplo que chega é o de meros "patos bravos", dignos representantes do povo. E tudo, sem qualquer ironia, muito democrático.
Resta saber se haverá, e quem iniciará, a mudança.
Luis Dinis
10:56
Não concordo mesmo nada consigo, MTavares.
Primeiro, o actual primeiro-ministro cumpriu com as suas obrigações fiscais, como eu ou você cumprimos. Por vezes com atrasos nas entregas das declarações ou nos pagamentos do IRS, mas pagando coimas e juros de mora. Já me aconteceu. E depois? A quem não aconteceu?
Segundo, em relação à segurança social o verdadeiro prejudicado pelo não pagamento de contribuições é o próprio em direitos futuros que perde.
Terceiro, há mesmo uma campanha suja contra o Passos Coelho em curso que foi lançada quando se chegou à conclusão que o famoso carisma não estava a dar uma para a caixa, as sondagens davam empate técnico, o país voltou a crescer e o Syrisa deu em miragem. Não acho nada infelizes as declarações do PR. Acho que são factuais.
- A Rodrigues
13:17
Apenas um pormenor: É certo, no que respeita à SS, que Passos Coelho perde direitos futuros pelo não pagamento das contribuições (e perderia ainda mais num regime de capitalização). Mas o nosso sistema de SS assenta num regime de repartição, ou seja, pagam hoje os que estão no activo para benefício dos que já não trabalham. Se muitos optassem por não pagar o que lhes corresponde hoje, começaria a existir problemas de pagamentos para os que precisam e têm direito hoje de receber.
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