29 Ago, 2013, 20:40
O pomo da discórdia era este diploma que estabelece o regime jurídico da requalificação de trabalhadores em funções públicas, aprovado pelo parlamento e conhecido por "Lei da Requalificação":
DECRETO N.º 177/XII
ESTABELECE O REGIME JURÍDICO DA REQUALIFICAÇÃO DE TRABALHADORES EM FUNÇÕES PÚBLICAS (...)
Artigo 4.º
Procedimentos
1 – Aos trabalhadores em funções públicas de órgãos e serviços ou subunidades orgânicas que sejam objeto de reorganização ou de racionalização de efetivos previstos no Decreto-Lei n.º 200/2006, de 25 de outubro, aplicam-se os procedimentos previstos nos artigos seguintes.
2 – A racionalização de efetivos é realizada nas situações a que se refere o n.º 4 do artigo 3.º e o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 200/2006, de 25 de outubro, bem como por motivos de redução de orçamento do órgão ou serviço decorrente da diminuição das transferências do Orçamento do Estado ou de receitas próprias, de necessidade de requalificação dos respetivos trabalhadores, para a sua adequação às atribuições ou objetivos definidos, e de cumprimento da estratégia estabelecida, sem prejuízo da garantia de prossecução das suas atribuições.
(...)
Artigo 18.º
Prazo do processo de requalificação
1 – A situação de requalificação decorre durante o prazo de 12 meses, seguidos ou interpolados, após a colocação do trabalhador nessa situação.
2 – Findo o prazo referido no número anterior sem que haja reinício de funções, é praticado o ato de cessação do contrato de trabalho em funções públicas.
(...)
Artigo 47.º
Norma revogatória
São revogados:
a)(...)
b) Os n.ºs 8 a 10 do artigo 33.º e o n.º 4 do artigo 88.º da Lei n.º 12-A/2008 (...)
Cavaco Silva requereu ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade de normas deste diploma que sofreu grande contestação por parte dos sindicatos da função pública.
Esta tarde o Tribunal Constitucional divulgou um comunicado em que declara ter-se pronunciado pela inconstitucionalidade de quatro normas fundamentais da "Lei da Requalificação":
Acórdão n.º 474/2013
Processo nº 754/2013
Relator: Conselheiro Fernando Vaz Ventura
Na sua sessão plenária de 29 de agosto de 2013, o Tribunal Constitucional apreciou um pedido de fiscalização abstrata preventiva formulado pelo Presidente da República, tendo decidido:
a) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma constante do nº 2 do artigo 18º do Decreto nº 177/XII, conjugada com a segunda, terceira e quarta partes do disposto no nº 2 do artigo 4.º do mesmo diploma, na medida em que cria novos motivos de cessação da relação jurídica de emprego público por efeito de redução de orçamento do órgão ou serviço por requalificação de trabalhadores para a sua adequação às atribuições ou objetivos definidos e por cumprimento da estratégia estabelecidas por violação da garantia da segurança no emprego e do princípio da proporcionalidade, constantes dos artigos 53º e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
Votaram a decisão os Conselheiros Fernando Ventura, Maria Lúcia Amaral (com declaração), Lino Ribeiro, Carlos Cadilha, Ana Guerra Martins e o Conselheiro Presidente Joaquim de Sousa Ribeiro.
Votou vencido o Conselheiro Cunha Barbosa.
b) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma constante do nº 1 do artigo 4º, bem como da norma prevista na alínea b) do artigo 47º do mesmo Decreto nº 177/XII, na parte em que revoga o nº 4 do artigo 88º da Lei nº 12-A/2008, de 27 de fevereiro, e na medida em que impõem, conjugadamente, a aplicação do nº 2 do artigo 4º do mesmo decreto aos trabalhadores em funções públicas com nomeação definitiva ao tempo da entrada em vigor daquela lei, por violação do princípio da tutela da confiança ínsito no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.
A decisão foi votada por unanimidade.
O governo de maioria absoluta de José Sócrates decidiu reorganizar órgãos e serviços ou racionalizar os seus efectivos por um decreto de 2006. Depois, na Lei 12-A/2008, retirou o vínculo de nomeação definitiva a todos os funcionários públicos, excepto forças armadas, diplomatas, serviços de informação de segurança, polícia judiciária, forças de segurança e inspectores. Os juízes são intocáveis porque são um órgão de soberania.
Mas para acalmar os funcionários que perderam o vínculo de nomeação definitiva e passaram para um contrato de duração indeterminada — assistentes operacionais, assistentes técnicos, técnicos superiores, professores, ... — colocou uma norma no artigo 88.º que os protegia de despedimento. Bastava revogar essa singela norma para se poder despedir qualquer funcionário sem nomeação definitiva.
Foi o que fez agora o parlamento no decreto 177/XII. Revogou essa norma na alínea b) do artigo 47.º para os poder despedir no nº 2 do artigo 18.º. E aproveitou para acrescentar mais alguns motivos de despedimento no nº 2 do artigo 4.º: redução de orçamento do órgão ou serviço decorrente da diminuição das transferências do Orçamento do Estado ou de receitas próprias, necessidade de requalificação dos respectivos trabalhadores, para a sua adequação às atribuições.
Hoje os juízes do Palácio Ratton declararam inconstitucionais o alargamento dos motivos de despedimento, por violação da garantia da segurança no emprego e do princípio da proporcionalidade, e a revogação do artigo que protegia a esmagadora maioria dos funcionários dos despedimentos, por violação do princípio da tutela da confiança.
O Tribunal Constitucional entendeu que “seria necessário uma definição, minimamente, precisa dos motivos da requalificação” que, em última instância, poderiam levar ao despedimento, algo que não estava previsto na Lei da Requalificação. “Esse requisito não estava preenchido”, disse Joaquim Sousa Ribeiro, presidente do Tribunal Constitucional, acrescentando que “o tribunal não diz que não pode haver redução de efectivos [na Função Pública], mas não pode ser por este meio. Foi essa a razão que conduziu ao sentido da decisão que foi tomada por maioria de seis votos em sete”.
Sousa Ribeiro continuou: "Quando em 2008 se estabeleceu o regime do contrato de trabalho, havia uma norma de salvaguarda quanto à cessação do contrato de trabalho. Entendeu-se que estava criada uma acção positiva do Estado num ambiente normativo em que as preocupações de racionalização de efectivos já se fazia sentir, o Estado entendeu dar essa garantia. Gerou-se uma confiança reforçada dos trabalhadores (...) e este interesse aqui não estava claramente defendido. Era desproporcionalmente afectada a confiança que legitimamente estes trabalhadores tinham". Aqui houve unanimidade entre os juízes.
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Absolutamente de acordo. É verdade que a débil economia lusa não consegue suportar o número actual de funcionários públicos. Mas esta lei depositava a selecção dos trabalhadores nas mãos das chefias dos serviços públicos, assente na convicção de que escolheriam os trabalhadores pelo princípio do mérito, senão os próprios resultados do serviço seriam postos em causa, afectando a avaliação das chefias.
Nada de mais errado. Esqueceram-se os governantes da podridão, e até corrupção, que reina na função pública: em geral, uma chefia tem o seu grupo de compadrio, envolvendo mesmo pessoas que não são funcionários públicos, e tem capacidade de disfarçar maus resultados durante imensos anos, iludindo as inspecções com relatórios e com medidas e actividades de fachada.
Nos agrupamentos de escolas/escolas não agrupadas, por exemplo, há corrupção em torno das actividades de enriquecimento curricular (AEC) do 1º ciclo: há associações de pais que recebem dezenas, por vezes, centenas de milhar de euros anualmente e o dinheiro é gerido entre directores, presidentes da associação de pais e professores amigos, havendo raríssimas actividades dadas por amigos que se limitam a deixar as crianças brincar nos computadores e nem sequer são convocadas assembleias para informação dos sócios, tudo na maior impunidade. Criada durante a tutela da ministra Lurdes Rodrigues, esta situação mantém-se, esperando tranquilamente estes grupos que o tempo passe e chegue 2015 para voltarem a ter a protecção ministerial socialista.
Se for dada aos directores das escolas a possibilidade de despedirem funcionários, sejam assistentes operacionais, técnicos ou professores, grande parte deles irá decidir em função dos seus interesses, sem preocupação com a qualidade do ambiente escolar ou do ensino.
Só com regras muito precisas sobre os motivos da requalificação, se poderá evitar um maior empobrecimento da qualidade do serviço público, impedindo as chefias de despedir os melhores e guardar os elementos dos seus grupos de compadrio que as ajudam a disfarçar os erros cometidos, tantas vezes propositadamente.