domingo, 26 de julho de 2015

Entrevista de António Vitorino ao Público


O socialista e antigo comissário europeu António Vitorino diz, em entrevista ao jornal Público, que não pode haver união monetária sem convergência económica, nem partilha de risco sem partilha de soberania.
Embora faça algumas críticas à Alemanha e ainda mais à França, reconhece a importância do eixo franco-alemão na construção europeia e espera que o Reino Unido não saia da União. Critica duramente a estratégia do governo do Syriza nas recentes negociações dentro do Eurogrupo. Critica os governos nacionais que não fizeram reformas estruturais na devida época para melhorarem a competitividade e defende a presença de Portugal no núcleo duro europeu que é o euro.

Eis uma entrevista que é obrigatório ler:


"Estive a reler as entrevistas que me deu ao longo desta crise. Numa delas, em Dezembro de 2011, diz o seguinte: “Temos de ajudar a Alemanha a ultrapassar o seu momento unipolar”. E acrescenta: “No fundamental, a Alemanha tem razão, falta-lhe aprender a ter razão.” A Alemanha aprendeu alguma coisa?
Subscrevo essas afirmações mas confesso que cheguei à conclusão de que o processo de aprendizagem da Alemanha é mais lento do que esperava.

O que já se criticava à Alemanha naquela altura ainda se critica hoje?
Exactamente. Por duas razões. Não emergiram contrapesos no contexto europeu, e ajudar a Alemanha a ultrapassar o seu momento unipolar é também encontrar parceiros que contrabalancem o seu peso, sendo que contrabalançar é no sentido de convergir. Há uma segunda razão que continua presente: creio que a Alemanha ainda está prisioneira da narrativa que construiu há quatro anos e da qual ainda não se conseguiu libertar. E é esse o grande salto que vai ter de se pedir à Alemanha: abandonar a ideia de que tudo se resumiu a uns países perdulários que viviam acima das suas posses e centrar a atenção nos desequilíbrios internos da zona euro em termos de competitividade a fim de encontrar as soluções que permitam responder a três questões.

Primeira, relançar o investimento que permita o crescimento económico. Em segundo lugar, definir reformas adaptadas a cada país e não um modelo único, isto é, não se trata de fazer de todos os países pequenas e médias Alemanhas. É preciso compreender que o combate aos desequilíbrios exige reformas estruturais inteligentes, adaptadas aos défices de competitividade de cada país, que são diferentes. Os problemas de competitividade portugueses não são os mesmos da França, mas a França também tem problemas de competitividade, como os tem a Itália. O terceiro elemento é melhorar a qualidade das instituições europeias que são responsáveis pela gestão da moeda única.

Mas justamente as instituições europeias, à excepção do BCE e com particular evidência para a Comissão, têm vindo a enfraquecer, comparadas com o poder do Conselho Europeu e, dentro dele, da Alemanha. Vimos isso agora com a crise grega.
Penso que Jean-Claude Juncker fez um esforço para recentrar o papel da Comissão e isso é positivo. Em segundo lugar, mesmo o tão vilipendiado Tratado Orçamental, que é um tratado intergovernamental exterior à União, atribui às instituições comuns um papel central — à Comissão, ao Tribunal de Justiça e ao Parlamento Europeu. A UEM sempre esteve “a cavalo” entre o pilar comunitário e o pilar intergovernamental e a crise avolumou o pilar intergovernamental. O MEE [Mecanismo Europeu de Estabilidade] e o Tratado Orçamental são tratados intergovernamentais. O que temos de garantir é que essa evolução intergovernamental possa convergir para a plena integração destes mecanismos no quadro da União Europeia e, para isso, as instituições têm de estar preparadas do ponto de vista também da legitimidade democrática, para assumirem novas responsabilidades.

A nova crise grega, com todas as suas reviravoltas, veio demonstrar que a Alemanha — voltamos sempre à Alemanha — não aprendeu grande coisa em matéria de resgates. O terceiro resgate à Grécia, mais uma vez, parece não incluir nada que permita à economia grega respirar.
Diria que a mais recente crise grega — não digo a última porque não será a última — demonstra os limites da gestão em modo de urgência: soluções ad hoc a que já se chama de “lista da lavandaria”, com reformas que envolvem os horários das padarias ou dos centros comerciais. Isso não resolve o problema de fundo nem vai obter os resultados pretendidos. Só vai agravar a recessão e tornar ainda mais difícil a situação da Grécia. Mas isso também é da responsabilidade do Governo grego e da maneira como actuou nas negociações

Aos ziguezagues.
Claramente. Mas o aspecto mais pernicioso desta recente crise grega é que desviou o debate europeu daquilo que é a questão central: as reformas de fundo da UEM. Retrocedemos e passámos outra vez a gerir isto de forma atrabiliária, porque tínhamos um elefante na sala chamado Grécia.

Que, de alguma maneira, também se podia prever.
E que estou a prever que vá voltar. O Grexit não desapareceu. Foi apenas escondido. Quando voltar, voltará sempre com maior gravidade. Falta uma visão a prazo da sustentabilidade da zona euro que tem a ver com a convergência das economias, com a necessidade de dinamizar o investimento e de criar um quadro regulatório europeu que permita apostar nos sectores de crescimento económico futuro, como a energia ou a economia digital. Só com um pacote destes a nível europeu, que implica também reformas estruturais a nível nacional, será possível encontrar uma solução de sustentabilidade duradoura para a zona euro.

Porque é que a Alemanha não consegue ou não quer perceber isso?
Creio que a Alemanha ainda não se fixou num modelo global. Por muito criticável que seja a ultima proposta do Presidente francês — e é muito criticável...

A ideia de que o euro precisa de um núcleo duro composto pelos fundadores e de um governo económico.
A ideia de um governo económico para a zona euro é muito antiga em França. Estava em cima da mesa em Maastricht em 1991. Mas, ao menos, esta iniciativa francesa, que manifestamente não é convergente com Berlim, poderá ter a virtude de levar a Alemanha a clarificar a sua visão de conjunto. Para os que andam sempre dizer que a Alemanha manda em tudo, talvez devessem reflectir sobre o facto de que esta é uma das áreas onde há falta de Alemanha, onde a Alemanha ainda não assumiu a sua responsabilidade.

Mas a falta de Alemanha ou Alemanha a mais acaba por afectar toda a gente.
Acho injusto dizer que a União Europeia só faz o que a Alemanha quer. Não corresponde à realidade, que é mais sofisticada e mais complexa, se quiser. É verdade que iniciativas europeias que não tenham o beneplácito de Berlim têm pouca probabilidade de sobreviver. Mas isso faz parte da dinâmica da negociação. Não há um diktat alemão, isso é uma enorme injustiça. Há um filtro. A Alemanha é um filtro e a ultrapassagem desse filtro exige negociação. Mas isso exige que todos tenham ideias claras do que querem, obrigando a Alemanha a ter as suas e a trazê-las para a mesa, confrontando-as com as dos outros.

E se alguma crítica pode ser feita à Alemanha — e pode — é que a maneira como a Alemanha geriu esta sucessão de crises afectou a sua imagem política como um país capaz de ouvir os outros. Perdeu nessa frente.

Esta crise grega teve duas particularidades que gostava que comentasse. É a primeira vez que um governo é liderado por um partido que não faz parte do mainstream europeu. Mas esse mesmo partido teve de render-se perante uma realidade que descobriu ser incontornável. Esta experiência para o resto da Europa significa o quê?
O Governo grego cometeu um erro colossal de cálculo na estratégia negocial que seguiu. Conseguiu isolar-se, alienar potenciais aliados e seguiu uma estratégia negocial de alto risco, baseada num pressuposto que se verificou errado: esticando a corda, a Europa cede porque ninguém estará disposto a dar o salto no desconhecido que é deixar um país abandonar a zona euro. Algumas ideias do Syriza, à partida, nem eram más. Por exemplo, a questão de indexar o pagamento da dívida ao crescimento do Produto. É uma tese defensável, razoável até. Desapareceu rapidamente do radar da negociação.

Não há a disponibilidade do outro lado?
A política significa também a conjugação de vontades e a probabilidade de haver uma conjugação de vontade para resolver o problema da dívida neste momento era muito pequena. A estratégia seguida foi totalmente errada. E isso não quer dizer que é por ser um governo de extrema-esquerda. Se fosse de extrema-direita ou de centro estaria igualmente destinada ao malogro. Além disso, o Governo grego prestou um mau serviço à causa europeia ao tentar criar a ideia de que podia usar a sua democracia nacional contra a União Europeia. E esse é um erro de princípio, porque a partilha de soberania não é usar as soberanias e as legitimidades democráticas de cada um contra os outros.

Era previsível que um Governo com as características do Syriza assinasse um acordo que nega tudo aquilo que defendeu? Humilhação é um sentimento muito pouco recomendável.
Aquilo que foi manifestamente uma humilhação grega é um erro que levaremos muito anos a apagar. A humilhação não se dilui nem desaparece. Os chineses dizem que só há vitória quando quem perde também tem alguma coisa a ganhar. E uma das razões para que isso acontecesse resulta de se ter mantido a negociação ao nível técnico e não político, entregue aos ministros das Finanças.

Sobretudo o ministro das Finanças alemão, que apresentou pela primeira vez a hipótese concreta de um Grexit.
Que não está prevista nos tratados. O facto de haver, pela primeira vez, uma instância da União, o Eurogrupo, que permite, ainda que entre parêntesis rectos, a saída de um país, é um sinal político extremamente preocupante, com que nós, como os espanhóis ou outros, nos devíamos preocupar.

Conhece Wolfgang Schäuble há muito tempo, era a braço-direito de Kohl. Como interpreta o comportamento intransigente que assumiu?
Não tenho dúvidas de que Schäuble é um europeísta convicto e que até considera que a zona euro deve ser o núcleo de integração aprofundada da União Europeia. O que a sua atitude deixou no ar — e isso é que é preocupante — é até que ponto o compromisso alemão com o euro significa manter a zona euro na sua composição actual ou se há margem de manobra — vou utilizar uma expressão forte que talvez não devesse utilizar — para a purificação do euro.

Nas actuais circunstâncias pode ser uma ideia muito perigosa.
Sim. Jacques Delors disse há uns meses que o futuro da União Europeia deve ser construído na lógica das cooperações reforçadas, embora não sendo uma cooperação reforçada, onde os países que partilham a moeda única dão um salto na partilha de soberania e na partilha do risco: são os dois elementos fundamentais da UEM. Não há partilha de risco sem partilha de soberania. E isto tudo tem de ter uma forte legitimidade democrática, porque se trata de um salto significativo na integração europeia. Ora bem, a questão é saber entre que partes esta partilha se vai fazer. Delors defende que esse núcleo é a zona euro na sua composição actual. Mas há outra proposta, dos preguiçosos, que é escovar da zona euro os menos desenvolvidos e fazer um euro forte. Há aqui uma parte escondida: esse euro forte só para alguns sofreria uma valorização cambial tal que retirava parte das suas vantagens competitivas. Contra isso, devemos contrapor que estamos dispostos a aceitar novas partilhas de soberania na zona euro, mas também do risco.

Mais uma vez, o problema é que a Alemanha não quer partilhar o risco.
É esse o debate que está em cima da mesa. Somos, por vezes, precipitados nas críticas que fazemos à Alemanha, mas a verdade é que a chanceler disse ao longo destes últimos cinco anos duas coisas muito importantes. Avançou com a proposta dos chamados contractual arranjements para efeito do combate aos desequilíbrios de competitividade em cada país. A sua ideia não foi aceite mas convém não esquecer que foi ela que a fez.

E que pode pôr de novo na mesa.
Com outros contornos, com outra configuração, mas que é a resposta ao problema real dos desequilíbrios de competitividade e dos problemas de divergência, que se agravaram com a moeda única. A segunda coisa que a chanceler disse — e disse-o pela primeira vez — foi que, excluindo um haircut, estava disponível para discutir a dívida a nível europeu. Não é uma questão que se possa tratar caso a caso. Já hoje as condições de financiamento da Grécia são melhores que as de Portugal, da Espanha e da Irlanda. E acho que devem ser melhores. A Grécia sofreu um tremor de terra de grau 10 da escala de Richter, do ponto de vista económico. Mas dito isto, não creio que a solução para o stock da dívida europeia seja a salamização da dívida, caso a caso. Tem de haver uma lógica europeia.

Ainda se lembra do relatório Schauble-Lamers, apresentado em 1994, que já previa uma core Europe, mais integrada do que o resto. A França não quis. Há aqui também uma eterna dificuldade francesa face à integração. Hollande fez tudo para evitar o Grexit, mas agora vem com um núcleo duro de fundadores.
Isso corresponde à posição tradicional da França...

A defesa do governo económico, mas não a ideia dos fundadores.
Sim, mas uma coisa não pode ser lida sem a outra, na minha opinião. Discordo da criação de instituições apenas dedicadas à zona euro. Já há o Eurogrupo. É preciso garantir que a UEM é uma política da União e que as tensões entre zona euro e o grande mercado interno têm de ser geridas por instituições comuns, sob pena de criarmos uma espécie de apartheid. Isso seria inaceitável, porque poria em causa os fundamentos do Mercado Interno, que é o grande elemento aglutinador da integração europeia. Mas esta é a posição tradicional de França. O que é novo na proposta de Hollande é que, mesmo na zona euro, deveria haver um núcleo duro de integração que envolveria apenas os seis países fundadores.

Mas de onde é que vem uma ideia que já não tem nada a ver com a Europa actual?
Sempre achei que, para haver aprofundamento, tinha de haver um motor, que só poderia ser o eixo franco-alemão. Mas o documento apresentado em Maio por Merkel e Hollande para a reforma da zona euro é decepcionante, na medida em que se baseia em menores denominadores comuns. Não é um motor propulsor.

Quanto ao núcleo dos seis fundadores, não só não há um racional económico como cria um problema político para resolver outro. O problema que quer resolver é a fractura Norte-Sul, porque inclui um país do Sul, a Itália. Do ponto de vista político, cria um outro problema: se a questão central da sustentabilidade do euro é o aprofundamento da integração e a resposta à divergência económica, então deixar de fora os países que estão a fazer um trajecto de convergência mais bem-sucedido, é criar um novo problema político. São os casos da Irlanda, que deve crescer a 3,5% para o ano, ou da Espanha que deve crescer a 3 por cento ou da Áustria com uma situação económica bastante confortável, ou a própria Finlândia que, estando hoje em recessão, continua a ser um Triplo A.

Ninguém vai aceitar essa proposta.
Tenho a convicção sincera de que acabará por se desvanecer. Mas como não acredito em bruxas, embora elas existam, então convém deixar já clara a posição de cada um sobre esta matéria. E tenho uma enorme expectativa sobre a maneira como a Alemanha vai reagir.

A lógica da Alemanha não tem sido essa.
Antes pelo contrário, tem sido no sentido de garantir instituições comuns e de ser o mais inclusiva possível. O interesse da Alemanha, fundado ou não — não quero entrar nesse debate —, ao apresentar o caso português ou o irlandês como casos de sucesso, joga contra essa lógica francesa.

O eixo Paris-Berlim continua a ser fundamental mesmo com o desequilíbrio que tem hoje?
Para bem do projecto europeu, tem de ser recuperado. Sempre disse que o motor do projecto europeu era o eixo franco-alemão, mas também sempre recorri à imagem dos três mosqueteiros que eram quatro. Temos o eixo franco-alemão e temos o Reino Unido. E o Reino Unido é parte integrante do eixo franco-alemão, por paradoxal que possa parecer. É o moderador externo, digamos assim, dos equilíbrios internos desse eixo. E como nós vamos estar confrontados com uma questão seriíssima, atinente ao Reino Unido...

Questão muito mais grave do que a Grécia...
É verdade, e espero que não saiam. Mas é manifesto que, tendo de tratar da questão britânica, isso vai ser um enorme desafio ao eixo franco-alemão.

A Alemanha quer o Reino Unido dentro, a França parece querê-lo fora, embora, depois, também queira uma relação especial com ele no que toca à defesa.
A relação franco-britânica é a mais antiga e tensa relação europeia. Mas são os únicos que têm uma concepção global de política externa, que são membros permanentes do Conselho de Segurança, que são as duas potências militares e nucleares europeias. De alguma forma, a repulsa entre eles vem de serem tão parecidos.

A minha ideia é esta: como a questão do Reino Unido vai estar em cima da mesa este ano, uma parte importante da solução não é apenas a concepção franco-alemã sobre o futuro da zona euro, é também sobre o futuro da União Europeia, no seu conjunto e com o Reino Unido a bordo.

Quando o euro nasceu foi olhado como uma forma de amarrar a Alemanha à União. Kohl ofereceu a Mitterrand o que de mais preciso tinha a Alemanha nessa altura, que era o marco. Hoje os resultados não são os que esperaríamos. Muita gente diz que o euro não uniu, antes dividiu.
Há uma mais-valia acrescentada com a moeda única, há. O euro é uma moeda de referência nas trocas internacionais? É. É uma moeda de reserva das economias emergentes? É. É, aliás, um dos poucos domínios em que a Europa dá cartas à escala mundial ou tem, pelo menos, os instrumentos para um protagonismo global. Mas é evidente que, nestes últimos 10 anos, houve países que beneficiaram mais da moeda única do que outros. A Alemanha à cabeça, permitindo-lhe criar um excedente da balança externa de 7%, e isso constitui um mérito da moeda única em benefício da Alemanha. Mas a questão não é tanto Norte-Sul mas centro-periferias. E o risco que existe na Europa é criar a ideia de que há ganhadores permanentes e perdedores permanentes. Essa é que é a verdadeira factura.

Mas isso não é percebido assim pelos alemães.
É verdade. Mas a crise veio pôr a nu que uma união monetária exige que haja convergência económica. Parte dos problemas da divergência resultam de opções tomadas pelos governos nacionais, que não aproveitaram em devido tempo a oportunidade da moeda única para fazerem as reformas necessárias para melhorarem a competitividade. O que está agora em cima da mesa é como é que se acrescenta esse pilar económico, fazendo-o num período de recessão económica e de menor crescimento à escala global, de relativa pujança, por enquanto, das economias emergentes...

Que, elas próprias, já estiveram bem melhores.
Sim. O problema é que a Europa não foi considerada como um refúgio alternativo para a retracção dos investimentos nos mercados emergentes. Esse papel voltou a ser dos Estados Unidos, com a retoma da economia americana. Temos de ser suficientemente humildes para perceber que o papel da Europa no mundo está ameaçado e que exige soluções tanto do ponto de vista económico, como da sustentabilidade da moeda comum, como da garantia da coesão social, afectada por esta crise, como da construção de uma política externa, de segurança e de defesa que reponha a Europa como um player global.

Donald Tusk disse recentemente que o maior risco de contágio não é financeiro, é político. As consequências políticas desta crise podem ser ainda mais devastadoras do que as económicas?
Tem toda a razão e basta olhar para a Grécia. O PASOK desapareceu, a Nova Democracia entrou em crise. Esta crise dividiu o próprio Syriza e, aparentemente, ainda é a partir do Syriza que se poderá construir no futuro alguma coisa — pelo menos com uma facção do Syriza. Mas se o Syriza soçobrar nos braços desta crise, o que resta é a Aurora Dourada. Não é esta a Europa que queremos.

E não é só a Grécia. Olha-se para a maioria dos países do euro e vê-se como os sistemas partidários estão a ser postos à prova. Às vezes a única excepção parece a nossa...
E a Alemanha. Prestem lá essa homenagem à chanceler. Se tivéssemos uma Marine Le Pen alemã...

A Europa acabava...
Ora bem. E mesmo a França é factor de enorme preocupação.

O centro-esquerda não consegue encontrar o seu espaço, que seria fundamental para criar uma alternativa dentro do consenso europeu.
A alternativa que a social-democracia representava há vinte anos atrás, que era globalização económica, crescimento e redistribuição mais justa, confrontou-se com um problema central que foi subavaliado e que é a desregulação da globalização. O modelo fazia sentido na teoria, mas faltava-lhe esse instrumento fundamental. Isso teve consequências sobre a mobilidade acrescida do capital, a diminuição da capacidade de tributação dos Estados e, consequentemente, da arrecadação do volume de impostos necessário para a redistribuição, acabando por gerar um aumento das desigualdades. Das desigualdades entre países, à escala global, e dentro dos países, incluindo também os países com economias desenvolvidas, o que é uma má novidade. É esse o desafio a que o centro-esquerda tem de responder. Não é fácil.

O seu optimismo é realista?
É. Eu sou defensor de soluções realista. E nada do que lhe disse nesta conversa é impossível. Porque há uma coisa que eu sei: a implosão deste projecto é uma catástrofe global, para todos, a começar pelos europeus e para aqueles que estão hoje na posição mais confortável da integração europeia. Leia-se Alemanha. Seria absurdo do ponto de vista histórico que a Alemanha pudesse suicidar-se através do processo europeu.

Qual é a Europa que nos convém, admitindo que a anterior não voltará.
Não voltará. Temos que aprender a viver numa Europa muito diferente daquela a que estávamos habituados e temos de redefinir duas coisas. O que é o nosso interesse nacional e como é que estribamos o consenso interno para estarmos nessa Europa. Não há modelos alternativos, há modelos complementares, seja o espaço transatlântico, seja o espaço lusófono, que são valores acrescentados para podermos negociar a nossa presença na Europa. Mas essa presença no núcleo duro europeu, que é o euro, continua a ser a ancoragem que melhor nos serve. Mas temos de perceber que, mudando as condições, também temos de redefinir os nossos objectivos. Estas questões têm a ver com as nossas escolhas internas. Em segundo lugar, termos de definir a maneira como gerimos as nossas alianças no plano europeu.

Em que sentido?
Vou dizer algo abstracto. Portugal é um exemplo de que, sempre que soube defender o seu interesse nacional encontrando soluções que potenciavam o interesse europeu, ganhou."


*


Este comentário faz a avaliação perfeita da entrevista e do entrevistado:

Pecas
Político de Bancada, Lisboa 26/07/2015 09:09
1) Excelente entrevista. António Vitorino é um oásis de inteligência no deserto socialista.
2) Para perceber a "rendição" da Grécia é preciso ler o Financial Times e ficar perplexo com a incompetência do governo grego no seu ousado plano para a saída do euro (o Observador tem um bom resumo)


Sem comentários:

Enviar um comentário