A sentença do processo das contrapartidas associadas à aquisição de dois submarinos, que corria na sexta vara criminal de Lisboa, absolveu os dez arguidos, três alemães e sete portugueses, ilibando-os da acusação de burla e falsificação de documentos e considerando como não provado que o Estado Português tenha sido lesado.
1. O processo das contrapartidas associadas à aquisição dos submarinos
O objecto do julgamento não foi o negócio da aquisição dos submarinos mas o das contrapartidas associadas à compra destes navios.
O consórcio German Submarine Consortium (GSC) que vendeu os submarinos a Portugal era formado pela Ferrostaal, uma empresa de prestação de serviços industriais, e pelos estaleiros navais HDW, adquiridos em 2005 pelo grupo ThyssenKrupp.
No contrato, o consórcio alemão GSC comprometeu-se a compensar Portugal pelo desembolso de 1 milhar de milhões de euros proporcionando a várias empresas portuguesas negócios com empresas alemãs no valor de 1,2 mil milhões.
Ora o Ministério Público (MP) considera fictícias muitas destas contrapartidas porque as encomendas de componentes de automóveis pela indústria alemã a fabricantes portugueses eram negócios que já estavam em curso antes da compra dos submarinos, não tendo resultado da intervenção do consórcio alemão. Não tendo havido uma mais-valia proporcionada pelo consórcio alemão à economia nacional, o MP acusa os arguidos de lesarem o Estado Português em quase 34 milhões de euros.
Outro é o entendimento do colectivo de juízes. Diz o acórdão que falar em burla por parte dos empresários portugueses do ramo automóvel é “quase absurdo”, uma vez que, se houvessem participado num esquema que lesaria os seus ganhos, isso significaria que teriam agido com o objectivo “de beneficiar e, simultaneamente, de prejudicar as suas próprias empresas, o que não tem cabimento lógico”.
A acusação formulada pelo MP faz uma interpretação errada do conceito de contrapartidas, ao restringi-lo a novos negócios, excluindo aqueles que já se encontravam em curso na altura da assinatura do contrato com os alemães. Uma interpretação que, “além de não ter suporte” no contrato das contrapartidas se revela “economicamente limitadora e contraditória com as finalidades subjacentes ao mecanismo de compensação”.
Por outro lado, prossegue o acórdão, como o contrato das contrapartidas foi prorrogado até 2016 “não é ainda possível a afirmação de prejuízo” para Portugal, tanto mais que a garantia bancária de mais de 68 milhões de euros depositada pela Ferrostaal “cobre todo e qualquer prejuízo que se quisesse afirmar”.
Segundo o acórdão, as peritagens apresentadas pelo Ministério Público violavam de forma flagrante vários preceitos legais de isenção e imparcialidade, consubstanciando “um pré-juízo de culpa extrajudicial” relativamente aos arguidos que não cabia à consultora fazer, mas sim ao tribunal e, por isso, foram invalidadas. “Aceitar e valorar um tal meio de prova colocaria em causa os princípios mais básicos de um Estado de Direito” e as garantias de defesa dos arguidos consolidadas na Convenção dos Direitos do Homem.
Exactamente o argumento usado pelos advogados dos arguidos ao afirmarem que a acusação deduzida pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) havia sido decalcada do relatório de perícia.
O colectivo de juízes aconselha que a resolução do conflito com o consórcio alemão GSC seja resolvido extra-judicialmente, ou pela renegociação do contrato ou através de um tribunal arbitral.
Os arguidos alemães Horst Weretecki, Antje Malinowski e Winfried Hotten e portugueses José Pedro Sá Ramalho, Filipe Mesquita Soares Moutinho, António Parreira Holterman Roquete, Rui Moura Santos, Fernando Jorge da Costa Gonçalves, António Lavrador Alves Jacinto e José Mendes Medeiros foram absolvidos.
O Ministério Público vai recorrer.
2. A investigação à aquisição dos submarinos
Na Alemanha, a venda dos submarinos a Portugal e à Grécia provocou uma série de investigações por suspeita de corrupção por parte da Ferrostaal sobre altos funcionários públicos e outras entidades desses países.
Daí resultou uma queixa-crime do Ministério Público alemão com a lista dos beneficiários dos 62 milhões de euros pagos em subornos onde figurava o ministro da Defesa grego Akis Tsochatzpoulos. Relativamente a Portugal, a acusação apenas refere no mesmo documento que dois executivos da Ferrostaal, Johann-Friedrich Haun e Hans-Peter Mühlenbeck, subornaram o cônsul honorário em Munique, Jürgen Adolff, pagando-lhe 1,6 milhões de euros através de um contrato de consultoria, para que o diplomata lhes arranjasse contactos com o governo português (descritos no seu 'diário').
Em Dezembro de 2011, Haun e Muehlenbeck aceitaram pagar uma coima de 36 mil euros e 18 mil, respectivamente, e ser condenados a uma pena suspensa até dois anos por proposta do juiz no julgamento por subornos que corria num tribunal de Munique. A Ferrostaal, também arguida no processo por crime de obtenção de vantagem económica através dos seus executivos, foi obrigada a pagar uma coima de 140 milhões de euros.
Em Janeiro de 2014, o tribunal alemão iniciou o julgamento de Jürgen Adolff.
'Diário' do cônsul
10.06.1999 - Recepção pelo embaixador de Portugal em Bona, Sr. Dr. João Diogo Nunes Barata. Conversa do Dr. Jürgen Adolff e Rita Adolff [sua mulher] com o Sr. Hanfried Haun, administrador da Ferrostaal e o vice Sr. Weisser. O Sr. Haun fala sobre a estagnação das pré-negociações com Portugal (...). Ele solicita apoio.
19.08.1999 - Telefonema do Sr. Haun por causa das propostas de contrapartidas e do meu encontro com o Sr. Dr. Veiga Simão (anterior ministro da Defesa).
2000 e 2001 - O Governo do Estado português (PS) não mostra um interesse prioritário nas negociações relacionadas com a compra de submarinos. Em especial devido a problemas orçamentais e à falta de uma solução de questões relativas ao financiamento.
05.07.2002 - Logra-se convidar o Sr. Primeiro-ministro Barroso para Munique.
Conferência na Fundação Hanns Seidel [fundação política ligada à União Social Cristã, da Baviera].
Organizo almoço a pedido do PM Barroso. Convido também o Sr. Haun. Promovi em especial a conversa entre o Sr. primeiro-ministro Barroso e o Sr. Haun.
Resultado: PM Barroso incumbe o Dr. Mário David [seu conselheiro] e a mim de continuarmos a acompanhar e a promover o assunto do GSC.
Comentário do Sr. Haun: Até agora nunca se negociou a este nível. Ainda à mesa, o Sr. Haun confirma honorários adequados. (...)
09.07.2002 - Proporciono um encontro a curto prazo entre o Dr. David e o Sr. Haun em Lisboa.
31.07.2002 - Sr. Haun comunica-me que estará em Lisboa a partir de 22.09.2002 e pede agendamento de novas reuniões.
24.09.2002 - O Sr. Haun comunica que discutiu, em Lisboa, o projecto de contrato para a compra e que esse foi bem recebido. Pede a intervenção a Dr. Jürgen Adolff para conseguir encontros com o ministro da Defesa, Dr. Paulo Portas, e com o ministro da Economia Dr. Tavares.
24.09.2002 - Carta enviada ao Dr. David. Acordada reunião para 03.10.2002 para proposta de financiamento. Marcada reunião com o ministro da Defesa, Dr. Paulo Portas.
03.10.2002 - Reunião sobre o ponto da situação negocial entre
Sr. Haun
Sr. Mühlenbeck
Dr. Jürgen Adolff
Sr. Rita Adolff
Seguiu-se encontro com Dr. Mário David em São Bento, residência oficial do primeiro-ministro, com o Sr. Philipp Schöller da International Defense Financing.
Apresentação extremamente importante que mostrou uma via (?) de que há maneiras de representar um financiamento neutro do ponto de vista orçamental.
Numa conversa subsequente com o Dr. David (conselheiro político do primeiro-ministro) pôde esclarecer que soluções idênticas também são possíveis com grandes Institutos (por exemplo, bancos).
Isso levou posteriormente, na sequência da elaboração de um conceito adaptado e refinado, a convidar 10 bancos internacionais e, finalmente, à escolha dos dois bancos financiadores, o Credit Suisse e o Espírito Santo.
10.01.2003 - Dr. Jürgen Adolff informa o Sr. Haun de que vem a Lisboa uma delegação francesa de alto nível.
Uma vez mais, Dr. Jürgen Adolff, aconselha veementemente a apresentar, num curto prazo, um conceito de financiamento adequado (orçamentalmente neutro) para cerca de 4 a 5 anos sem exigibilidade do pagamento.
07.02.2003 - Buscar o ministro da Defesa ao aeroporto de Munique para a Conferência de Segurança. Durante a viagem entre o aeroporto e o hotel, cerca de 40 minutos, conversa a dois. Entre outros assuntos, também sobre submarinos.
08.02.2003 - Buscar ministro Paulo Portas ao hotel.
Participação [de Portas] na Conferência de Segurança. Conhecido statement do ministro Paulo Portas a favor de [Donald] Rumsfeld contra [Joshka] Fischer relativamente à guerra do Iraque. (...)
Conversa entre o Dr. Paulo Portas e o então presidente da Comissão de Defesa da Alemanha.
09.02.2003 - Pequeno-almoço com a delegação portuguesa no hotel e aconselhamento sobre a reacção da imprensa ao statement do Sr. ministro Paulo Portas. A minha proposta foi a de acalmar os ânimos com o contrato dos submarinos. Conversa entre o Dr. Paulo Portas e o presidente da Comissão de Defesa da Alemanha, intermediada por mim.
25.09.2003 - GSC ganha o concurso.
11.11.2003 - É tornada pública a decisão pelos submarinos alemães.
19.02.2004 - (...) Sr. Haun pediu ajuda. Negoceia, há semanas, com subalternos, sem qualquer progresso. (...) Prometo esmerar-me.
21.02.04 - Assinatura oficial dos contratos (...).
Contrapartidas significativamente simplificadas. Não é necessária a participação nos Estaleiros de Viana do Castelo.
A Grécia comprou, em 2000, quatro submarinos à Ferrostaal por 2,85 mil milhões de euros, quando era ministro da Defesa Akis Tsochatzpoulos. As investigações comprovaram que o antigo governante estava na lista dos beneficiários de 62 milhões de euros pagos em comissões, tendo o ex-ministro sido preso, em Outubro de 2013, por corrupção em compras de material militar.
No mês passado, o caso dos submarinos levou a mais duas detenções: Sotiris Emmanouel, um executivo dos Estaleiros Helénicos acusado de ter recebido 24 milhões de euros através de paraísos fiscais, e Ionnis Beltsios, um alto-funcionário ligado ao ex-ministro da Defesa Tsochatzpoulos.
Em Portugal, a investigação por suspeitas de corrupção na aquisição dos dois submarinos comprados em Abril de 2004 pelo Estado, quando Durão Barroso era primeiro-ministro e Paulo Portas ministro da Defesa, teve início em 2006.
No âmbito da investigação do caso Portucale, outro caso de corrupção, foram realizadas escutas telefónicas a Abel Pinheiro, ex-director financeiro do CDS-PP, que envolveram Paulo Portas e António Pires de Lima, líderes desse partido, tendo sido descoberta, através de buscas, uma conta bancária na Suíça que terá sido usada para esconder os subornos pagos pela Ferrostaal no negócio dos submarinos.
O conselho de ministros que homologou a proposta de Paulo Portas para adjudicação da compra dos submarinos ao consórcio alemão — Resolução do Conselho de Ministros 183/2003 — também o mandatou para conduzir as diligências com vista à celebração dos contratos relativos a esse negócio.
A Ferrostaal vendeu os submersíveis por 880 milhões de euros, mas Portas optou por financiar o negócio, através do consórcio bancário Banco Espírito Santo/Credit Suisse, com contratos swap para não pesarem nos défices públicos dos anos mais próximos, elevando a despesa para 1 milhar de milhões.
No âmbito do Programa Relativo à Aquisição de Submarinos (PRAS) (...) foi homologada, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 183/2003, de 25 de Novembro, a proposta do Ministro de Estado e da Defesa Nacional de adjudicação das prestações concursadas à proposta do submarino na versão técnica com AIP do German Submarine Consortium.
Na mesma resolução, foi o Ministro de Estado e da Defesa Nacional mandatado para conduzir as diligências com vista à celebração dos contratos a que alude o artigo 34.º do PRAS, assim como de outros contratos que se revelem necessários ou adequados no quadro da execução do programa identificado (...) devendo o Conselho de Ministros ser informado da versão final desses contratos.
Neste contexto, foram celebrados, em 21 de Abril de 2004, entre o Estado Português e o German Submarine Consortium, um contrato de aquisição de dois submarinos com AIP e um contrato de contrapartidas. Foram ainda celebrados, em 4 de Junho de 2004, um contrato de swap entre o Estado Português e o Banco Espírito Santo, S. A., um contrato de swap entre o Estado Português e o Credit Suisse First Boston International, um contrato de cessão de créditos entre o Estado Português e o Banco Espírito Santo, S. A., um contrato de cessão de créditos entre o Estado Português e o Credit Suisse First Boston International e um contrato de agência e arbitragem entre o Estado Português e as duas instituições de crédito referidas.
Nos termos do disposto no n.º 3 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 183/2003, de 25 de Novembro, o Ministro de Estado e da Defesa Nacional e dos Assuntos do Mar informou o Conselho de Ministros da celebração e do conteúdo de cada um dos contratos referidos.
(...) o Conselho de Ministros resolve:
1 — Ratificar todos os contratos celebrados com o Estado Português no âmbito do PRAS e autorizar as despesas inerentes aos mesmos.
2 — Designar a Comissão Permanente de Contrapartidas como órgão competente para a prática de todos os actos relativos à execução, acompanhamento e fiscalização do contrato de contrapartidas.
Presidência do Conselho de Ministros, 5 de Agosto de 2004. — O Primeiro-Ministro, Pedro Miguel de Santana Lopes.
Sabe-se que desapareceu um conjunto de documentos relativos ao financiamento da aquisição dos dois submarinos, entre eles a carta que o consórcio bancário BES/Credit Suisse terá enviado ao então ministro da Defesa, Paulo Portas, em 2004, a pedir para alterar a margem de lucro no financiamento da compra dos dois submarinos, já depois de ter ganho o concurso, e a respectiva autorização.
Também a Escom, outra empresa do Grupo Espírito Santo, estará sob suspeição com o presidente, Hélder Bataglia, e dois administradores desta empresa, Luís Horta e Costa e Pedro Ferreira Neto, indiciados por corrupção activa, tráfico de influências e branqueamento de capitais.
A empresa foi consultora do consórcio alemão no negócio dos submarinos e estes três responsáveis integram uma lista de 13 pessoas consideradas pelo MP como “intervenientes com papel relevante, se não mesmo determinante, na forma como foram negociados e adjudicados os contratos de aquisição e de contrapartidas” dos submarinos, numa carta rogatória de Maio de 2011 enviada às autoridades alemãs.
A Escom “terá suportado custos totais que não ultrapassaram cinco milhões de euros com a prestação de serviços à Man Ferrostaal (...) no entanto, recebeu como pagamento por aqueles serviços 30 milhões de euros. Face à disparidade de valores, bem como aos depósitos efectuados na conta de um partido político de que era dirigente o então ministro da Defesa Paulo Portas, existem fortes suspeitas de que parte do pagamento efectuado pela Man Ferrostaal à Escom possa ter sido utilizado para favorecer a escolha do consórcio alemão no âmbito do fornecimento de submarinos à Marinha Portuguesa”, acrescenta o MP.
Em 2011, esta investigação deu origem ao processo das contrapartidas dos submarinos de que hoje foi lida a sentença. Mas, ao contrário do que se passou na Alemanha e na Grécia, o processo relativo à aquisição dos submarinos teima em não sair da fase de inquérito.
Passados oito anos, a Procuradoria-Geral da República diz apenas que o “processo está em investigação e encontra-se sob segredo de justiça”.
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