A história que vamos descrever tornou-se vulgar neste País. Temos
- uma câmara municipal — neste caso, a da Covilhã;
- uma associação de desenvolvimento local presidida pela câmara, logo pelo respectivo presidente, que gere um programa financiado pela União Europeia — aqui chama-se Rude;
- um presidente de câmara casado com uma funcionária pública.
A acção começa em 1998.
Carlos Pinto fora eleito presidente da câmara da Covilhã, no ano anterior, pelo PSD. Nessa época o País era governado pelos socialistas, por isso o eleitorado nas autárquicas votou nos sociais-democratas: é habitual.
Celeste Valente era mãe de uma filha de Carlos Pinto, e já sua ex-mulher, e uma simples "assistente técnica" numa escola secundária. A associação de desenvolvimento rural Rude, presidida, por inerência, por Pinto, pôs um anúncio de emprego; ela respondeu e foi admitida como “chefe dos serviços administrativos”: também é habitual.
Em Dezembro de 2001, três anos depois, o Ministério da Educação autorizou a sua transferência dos serviços administrativos da escola para um lugar de "assistente técnica" no quadro da câmara da Covilhã.
Caro leitor, está a pensar que a senhora “passou de cavalo para burro”?
Não passou. Em Março de 2002, a autarquia e a Rude celebraram um protocolo, através do qual a primeira se comprometeu a "disponibilizar temporariamente meios humanos para o trabalho administrativo da Rude, enquanto esta não dispuser de meios financeiros próprios". Ficou registado que isso verificar-se-ia "após a assinatura" da “convenção que formaliza o pacote financeiro respeitante ao programa de acção local a realizar até 2006", já aprovada no quadro do programa Leader II financiado pela União Europeia.
Os ditos meios humanos cedidos à Rude resumiram-se a Celeste Valente... que já lá trabalhava desde 1998.
Correram os anos e, graças à reforma da função pública e à avaliação introduzida pelo primeiro governo de José Sócrates, a senhora obteve um Excelente na autarquia e subiu duas posições remuneratórias, passando a auferir um vencimento de 1458 euros, desde o início de 2009, agora na função de “coordenadora técnica”, o novo nome dado pelos socialistas à chefia de funções administrativas:
Aviso n.º 5746/2010
Alteração da posição remuneratória — Excepção
Para os efeitos previstos no n.º 4 do artigo 48.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, torna-se público as alteração de posição remuneratória verificadas no Município da Covilhã, deliberadas pela Câmara Municipal na reunião de 6 de Novembro de 2009, sob proposta, do Presidente da Câmara, (...)
Proposta
(...)
Pretende-se ainda alterar a posição remuneratória ao abrigo dos números 1 e 2 do artigo 48.º da LVCR, concretizada na alteração de 2 posições aos seguintes trabalhadores que obtiveram a menção qualitativa de Excelente e de 1 posição aos trabalhadores que obtiveram a menção de Muito Bom na avaliação de 2008, ordenados pela avaliação quantitativa, aludindo a adequada fundamentação nos termos legais exigidos: Maria Celeste Valente, Coordenador Técnico, para a 3.ª Posição/Nível 20, remuneração de 1458,94€; Fundamentação: Realizou com excelência funções técnicas de elevada complexidade, demonstrou elevada motivação pessoal e profissional, elevados padrões de planeamento e execução do trabalho previsto, revelando excelentes relações interpessoais com reflexos na melhoria do serviço, superou visivelmente os objectivos previstos.
(...)
Covilhã, 3 de Março de 2010. — O Vereador Responsável pela Gestão de Recursos Humanos, Pedro Miguel Abreu Silva.
Onze anos depois, no final de 2012, começou a ouvir-se dizer na terra que a senhora recebia simultaneamente pela câmara e pela associação. Repentinamente, a sua cedência à Rude termina em 31 de Dezembro desse ano.
Mas logo a seguir, a senhora pede à câmara uma licença sem vencimento que lhe foi concedida, de 2 de Janeiro a 31 de de Julho de 2013 — Aviso 5142/2013. Reacendeu o rumor de que houvera acumulação de vencimentos.
Avizinhavam-se as eleições autárquicas de Setembro deste ano. Celeste Valente pede a interrupção da licença sem vencimento para 1 de Junho, prontamente deferida pela Directora de Departamento com delegação da gestão de recursos humanos — Aviso 8520/2013. Finalmente deixa a Rude e regressa à autarquia, onde nunca tinha trabalhado, para ocupar o lugar de “coordenadora técnica” no novo organograma camarário — Despacho 555/2013.
No dia 3 de Junho, o PÚBLICO decide questionar o presidente da Rude e presidente da câmara, Carlos Pinto, sobre a acumulação de vencimentos da ex-mulher na associação e na autarquia.
O presidente da câmara garante, em resposta formal e escrita de 13 de Junho, que Celeste Valente apenas recebera da Rude a diferença entre o salário que lhe era pago pela câmara e aquele que lhe era devido por contrato com a Rude. E que a associação devolvera integralmente à câmara o valor pago de acordo com um “calendário programado”.
A Rude declara em 7 de Junho, também por escrito, que a funcionária começou por ter, em 1998, um salário líquido de 800 euros, em 1998, recebendo 1200 desde 2009. A associação pagava-lhe apenas a diferença entre o que ela recebia na câmara e estes valores, mas devolvera integralmente à câmara o salário pago de acordo com um “calendário programado”, acrescentando que esse calendário tivera “cumprimento total em 31 de Dezembro de 2012”.
Contudo vimos acima que a câmara lhe pagava um vencimento de 1458 euros desde 2009. Portanto a diferença 1200-1458 era negativa, ou seja, não batia a bota com a perdigota.
Mas, tanto uma como a outra, recusaram-se a dizer quando foi feita e qual o montante dessa devolução. A câmara recusou mesmo fornecer cópia de quaisquer documentos referentes a essa devolução, violando a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos.
Face a uma queixa do PÚBLICO à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativo, esta emitiu um parecer no sentido de que tais documentos deviam ser entregues ao jornal.
Tal veio a acontecer só depois de Carlos Pinto ter cessado o seu mandato na câmara e ser substituído pelo socialista Vítor Pereira.
Verificou-se que havia dois recibos de pagamentos da Rude à autarquia, nos valores de 100.000 euros e 67.792 euros, feitos a 7 e a 12 de Junho. Ou seja, quatro e nove dias depois de acossado pelas perguntas do jornal.
*
Deixamos uma questão:
Quantos casos similares existirão noutras das 308 câmaras municipais deste País?
Não podemos duvidar que o nepotismo grassa nas autarquias: as chefias dos departamentos camarários colaboram bovinamente nas tramóias dos políticos e o objectivo dos autarcas não é servir os munícipes mas servir-se deles. Ser autarca tornou-se uma profissão. Onde é permitido roubar legalmente.
Esperemos que o eleitorado tenha um rebate de consciência e deixe de votar nos actuais candidatos dos partidos políticos portugueses.
Este caso é paradigmático noutra vertente, a da avaliação do desempenho na função pública. O presidente da câmara propôs uma avaliação fraudulenta, o conselho coordenador de avaliação deu parecer favorável, as remunerações subiram na folha de salários e foram engrossar o défice do Estado. A partir de 2008, este procedimento foi alastrando pela função pública.
Depositar a avaliação e, em consequência, a progressão da carreira dos funcionários públicos nas mãos dos dirigentes da função pública — directores de escolas, presidentes de institutos públicos, presidentes de juntas de freguesia ou de câmaras municipais, ... — veio incentivar o nepotismo dentro das instituições, o silenciamento de situações ilícitas por parte do funcionalismo de topo e a desmotivação dos melhores elementos, fazendo crescer exponencialmente a corrupção não só no seio da função pública como nas relações das administrações públicas com o sector privado.
A partir de 2008 foram os mais subservientes que progrediram na carreira. E como a subserviência está ligada à incompetência, a avaliação do desempenho, no modelo aplicado pelos governos de José Sócrates, teve também como resultado a degradação da qualidade dos serviços públicos.
O ambiente dentro dos organismos públicos tornou-se tão repugnante que foi um alívio quando a situação de pré-bancarrota obrigou o Orçamento de Estado de 2011 a instaurar o congelamento das carreiras que se mantém e continuará, pelo menos, até ao fim do plano de assistência financeira externa.
Segundo fui informada, esta senhora foi agora nomeada "coordenadora técnica" da Biblioteca Municipal da Covilhã. É verdade? A sê-lo, detém alguma qualificação que a habilite a gerir uma biblioteca? É bibliotecária, tem formação na área? É que as bibliotecas, ultimamente, começaram a voltar a ser utilizadas como depósito de figuras amigas dos presidentes e vereadores, geralmente desconhecedoras das funções e missões que lhes incumbem, e vendo assim altamente prejudicado o seu serviço à população.
ResponderEliminarCeleste Valente pertencia aos quadros do Ministério da Educação, ocupando um lugar de “assistente técnica” numa escola. Esse lugar exigia habilitações literárias reduzidas — antigamente era o 9º ano e, actualmente, o 12º ano.
EliminarLogo a seguir à eleição de Carlos Pinto para presidente da câmara da Covilhã, Celeste Valente foi para a Rude (1998), uma associação presidida, por inerência, por Pinto.
A senhora pediu a transferência do ministério para os quadros da câmara em Dezembro de 2001 para um lugar de “assistente técnica” mas nunca trabalhou na câmara, foi cedida à Rude em Março de 2002.
Graças aos governos Sócrates, a partir de 2007 só não obteve o secundário quem não quis. Com o 4º ano, e sabendo ler e escrever, obtinha-se o diploma do 9º ano em troca da entrega de um dossiê de fotocópias com o “percurso de vida” num centro “novas oportunidades” e o diploma do 12º ano depois da frequência de algumas disciplinas de um curso, com cerca de um ano, numa escola secundária.
Isto no caso de uma pessoa vulgar, quem estivesse encostado a um político nem precisava de frequentar aulas, havia sempre directores de escolas e professores dispostos a justificarem-lhe as faltas e a passarem o diploma.
Em 2010 é tornado público pelo Aviso 5746/2010 a sua subida de 2 posições remuneratórias na câmara, já num lugar de “coordenadora técnica” que exige o 12º ano.
Quando começa a guerra para as últimas eleições autárquicas, termina a sua cedência à Rude, em 31 de Dezembro de 2012, mas entra imediatamente em gozo de licença sem vencimento em 2 de Janeiro de 2013 de que sai em 1 de Junho.
Entretanto é publicado o novo organograma camarário — Despacho 555/2013 (não adianta fazer o link porque o Diário da República está inacessível) — onde aparece incluída na divisão de Finanças da câmara num lugar de “coordenadora técnica”, mas não como “Quadro Técnico” que exige habilitações de nível superior.
O jornal Público refere nesta notícia que Celeste Valente está a desempenhar actualmente as funções de coordenadora técnica da biblioteca da câmara da Covilhã, mas não dispomos de documentação comprovativa.
Gostei da "reportagem" , devidamente "documentada".
ResponderEliminarEsta parte é interessante -
" O ambiente dentro dos organismos públicos tornou-se tão repugnante que foi um alívio quando a situação de pré-bancarrota obrigou o Orçamento de Estado de 2011 a instaurar o congelamento das carreiras que se mantém e continuará, pelo menos, até ao fim do plano de assistência financeira externa."
Lamentavelmente tenho de confirmar de que se "antigamente" (não sou desse tempo), todos os funcionários eram MUITO BONS, e progrediam de 3 em 3 ou 4 em 4 anos, sem qualquer problema... com a alteração, implementada pela lei 66B .. é a vergonha total! E muito mais não posso, digo, devo dizer.
Assistente Técnico na Administração Pública (Educação)
EliminarEsta é a história de alguém que passou de “assistente técnica” para “coordenadora técnica” à sombra de um presidente de câmara.
Se a subida fosse por mérito, até podia ser para um lugar de “Técnico” ou “Técnico Superior” que nada havia a dizer.
Está com razão, caro leitor, quando diz que a progressão automática não era correcta mas a avaliação implementada pela lei 66-B/2007 tem sido “a vergonha total”.
Também nos causa repulsa a maior parte das avaliações feitas ao abrigo dessa lei, por isso transcrevemos no artigo a fundamentação da subida de 2 posições remuneratórias desta funcionária que nem sequer trabalhava na câmara:
“Realizou com excelência funções técnicas de elevada complexidade, demonstrou elevada motivação pessoal e profissional, elevados padrões de planeamento e execução do trabalho previsto, revelando excelentes relações interpessoais com reflexos na melhoria do serviço, superou visivelmente os objectivos previstos.”