Quem quiser perceber a impostura que é a política energética portuguesa tem obrigatoriamente de ouvir a audição do engenheiro Henrique Gomes, hoje, na comissão da Economia e Obras Públicas do parlamento.
Como os problemas abordados irão reflectir-se na factura eléctrica que vai ser paga pelos consumidores, transcrevemos a declaração inicial:
"Entrámos em negociações com os produtores [de energia eléctrica] por causa das obrigações que tínhamos com o MoU [memorando da troika] e sentimos a necessidade de desenvolver um modelo de equilíbrio com as obrigações que, ao longo dos anos, o Estado tinha assumido com os produtores para sabermos onde estávamos e percebermos qual era a trajectória tanto mais que, quando chegámos, a perspectiva de aumento das tarifas para 2012 era 31%, sem o IVA.
O modelo estava feito em Agosto. Como a primeira ronda das negociações tinha sido infrutífera, porque todos os produtores se escudaram nos direitos adquiridos, nos contratos havidos, ... daí para a frente começámos a trabalhar numa alternativa, para não pôr em causa os contratos existentes.
Essa alternativa era uma contribuição especial para chamar os produtores a um equilíbrio de que o sistema necessita rapidamente porque não há capacidade na nossa economia e no Estado, neste momento, para garantir o financiamento — é garantido pelo comercializador de último recurso, neste caso a EDP, e a dívida era extremamente elevada, cerca de 17 mil milhões. E, mesmo que fosse possível, seria retirar financiamento à economia.
Desenvolvemos essa contribuição para o sector eléctrico com o objectivo de que as tarifas não subissem mais que 1,5% reais [acima da inflação] e que, no horizonte de 2020, o sistema estivesse sem dívida.
O modelo foi validado pela EDP, como grande interlocutor e tendo intervenção em quase todos os segmentos [de produção de energia], e também conseguimos acertar os pressupostos embora sejam optimistas.
Depois entrámos em negociações para encontrar as medidas adequadas mas as visões eram diferentes. A visão da EDP é que o sistema tem dificuldades de curto prazo mas com o tempo equilibra-se. A sua preocupação é manter o valor da empresa, o que é normal. A nossa visão é que o sistema está gravemente desequilibrado e precisamos de cortar custos, o que significa cortar valor aos produtores.
Para [a contribuição especial] ser uma medida constitucional tinha várias características: não só era consignada ao sector como era universal dentro do sector, era equilibrada relativamente às naturezas das produções e as relações de confiança, outra questão que deveríamos salvaguardar, atendendo às condições excepcionais que o País estava a viver — tinha-se mexido no 13º e 14º meses — não era uma preocupação segundo os juristas que consultámos.
Atingimos o mês de Setembro e, para não prejudicar a privatização da EDP, foi considerada outra abordagem. Concomitantemente havia a privatização e as revisões MoU. A segunda reavaliação do MoU, em meados de Novembro, dá origem ao novo item [5.15] em que o governo se compromete a identificar as rendas — é a primeira vez que a palavra aparece significando lucro excessivo, para além daquilo que era a normal remuneração do mercado — em todas as naturezas e por todos os produtores.
A segunda revisão é assinada em 9 de Dezembro e tínhamos de apresentar as conclusões à troika no final de Janeiro, sendo este mês para determinar essas rendas. A privatização dá-se por volta de 20 de Dezembro, portanto é posterior ao compromisso do governo de determinar as rendas.
Em 8 de Janeiro dou uma entrevista e no rescaldo apercebo-me que, para fazer uma negociação, o Estado, como regulador económico, tem de se afirmar: criar uma boa equipa negocial e indicar o alvo a atingir. Não o consegui fazer e apresentei a demissão."
Nas rondas de perguntas dos deputados, Henrique Gomes acrescentou que "o sector da energia tem grandes empresas, muito bem organizadas, muito competentes, dominam quer a imprensa, porque gastam rios de dinheiro, quer os consultores e os advogados, obviamente têm contratos muito bem feitos. Agora nós temos um problema para resolver e o Estado assume-se ou não se assume e choca-me que não o faça".
"Estando [o país] numa situação excepcional, o Estado deveria chamar à negociação para rever os CMEC [custos de manutenção de equilíbrio contratual, celebrados com a EDP], até porque há muitas situações que não estão na lei mas sim nos contratos propriamente ditos." Referiu que também não conseguiu chegar a acordo com os CAE [contratos de aquisição de energia com a Endesa e a International Power].
Sobre os cálculos estipulados nos contratos para calcular os sobrecustos anuais, o antigo secretário de Estado da Energia referiu que "tudo aquilo é uma trapalhada e é sempre no mesmo sentido".
O estudo encomendado pela secretaria de Estado da Energia à Cambridge Economic Policy Associates (CEPA), uma empresa ligada à Universidade de Cambridge, analisou a rentabilidade associada a vários encargos da produção eléctrica ordinária e apresentou os referenciais. Para a Produção em Regime Especial (PRE), que abrange as eólicas, a co-geração, fotovoltaica e biomassa, o estudo foi feito pela AT Kearney.
A partir daqui, aquela secretaria determinou que os dois CAE em vigor totalizam 20 milhões de euros de rendas excessivas por ano, enquanto as dos CMEC ascendem a 160 milhões anuais.
Concluiu ainda pela existência de um total de 299 milhões de euros de rendas excessivas, um valor que sobe para 372 milhões de euros por ano quando se acrescenta os incentivos de garantia de potência.
Se se cortasse estas rendas aos produtores, as tarifas pagas pelos consumidores só subiriam 1%, embora continue a ser um aumento de tarifas.
No entanto, poucas horas depois de ser entregue ao governo pelo ministro da Economia, este relatório chegou às mãos de António Mexia que veio discordar para a imprensa. O governo não enviou o relatório à troika, tendo-o substituído por outro com considerações gerais, o que levou Henrique Gomes a pedir a demissão.
Se o leitor não tiver mais nada com que se entreter, poderá também ouvir a audição do indivíduo que foi posto pelo lóbi energético na secretaria de Estado da Energia.
No final deixamos uma adivinha: Qual é o país da Europa, qual é ele, onde se paga 5300 euros por mês a um palhaço, sem menosprezo para com os verdadeiros profissionais?
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